Existe uma potência em narrativas capazes de reinventar. Reinventar no sentido de não apenas ser mais do mesmo, não apenas em quesitos técnicos, mas especialmente narrativos e as vezes por consequência, sociais.
Partindo do fato de o filme O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915), dirigido por G. W. Griffith, ser estudado em salas de faculdades de cinema, notamos a estrutura da qual a branquitude usa a muitas gerações para perpetuar certos mitos. Esses mitos costumam colocar as outras etnias, não brancas, em locais de subalternização, de animalização, de violência. Quantos personagens negros reduzidos ao estereótipo de marginais, de capangas, de violentos, existem na cultura pop? Quantas vezes vemos mulheres negras em posições de empregadas, de apenas uma amiga sem desenvolvimento das personagens principais?
Isso parte de estereótipos narrativos para personagens étnicos baseados numa cultura racista dos quais estamos há anos sendo forçados a beber. Se os filmes consumidos em massa nos cinemas são feitos por pessoas brancas, é impossível fugir da ideia de termos uma cultura voltada para um olhar branco. O olhar do cinema é extremamente direcionada para uma ótica branca, seja ele o cinema de arte ou o cinema mais popular. Aos poucos, é possível notar uma mudança, extremamente lenta, e uma maior inclusão de profissionais negres e obras pelas quais são responsáveis ganharem mais espaço.
É daí onde chegamos ao filme Rebento (2018), dirigido e roteirizado por Vinícius Eliziário, exibido no Curta Caicó 2020, no MOV 2019 e no FRAPA 2020, dentre outros festivais pelo país. O filme baiano conta a história de um jovem, Zói (Pedro Riccardo), e a descoberta da gravidez de sua namorada Jéssica (Jéssica Moura). Partindo do ponto de vista de seu protagonista, o filme faz uma viagem no tempo ao longo de sua história e é capaz de tocar numa ferida extremamente presente na vida de muitos jovens. A história garantiu mais recentemente o prêmio de melhor roteiro na mostra regional do 3º Curta Caicó.
Isso pode se dar pela forma como a obra se permite colocar uma diferente ótica dentro de uma história muito contada. Temos no protagonista, Zói, uma importante figura, para a narrativa e também para a audiência. Não se trata de um personagem raso, cuja escolha é ‘sim’ ou ‘não’, mas vai para muito além disso. Crescendo sem um pai, criado apenas por sua mãe, o protagonista se coloca no olhar de seu próprio filho, enquanto indaga sobre sua decisão. Decisão essa responsável pelo fato de muitas pessoas possuírem apenas a mãe em suas certidões de nascimento e o grande número de abandono parental.
Sendo o foco do filme, e persona presente quase inteiramente ao longo do mesmo, Pedro Riccardo consegue não apenas convencer dramaturgicamente, como também se alia ao roteiro, assinado por Eliziário, e fornece uma experiência particularmente única interpretando Zói. O olhar do diretor é extremamente sensível ao longo da obra, o mesmo não apenas dirigindo e assinando o roteiro mas também fazendo a direção de fotografia e edição do curta. Talvez, seu envolvimento tão profundo com todo o processo seja a razão da história ser capaz de capturar a atenção e a emoção de forma tão magnífica.
Não posso deixar de mencionar a importante participação de Jéssica Moura, atriz que participa do filme não apenas como a namorada de Zói, mas também como sua mãe mais nova. O artifício é feito para colocar o olhar de Zói ter crescido sem uma figura paterna, se vendo no lugar de abandonar ou não a sua namorada e suas responsabilidades como pai. Em certo momento do filme, o personagem faz uma pesquisa sobre ‘pai cria filho’ e se depara com inúmeros relatos e notícias sobre a grande quantidade de abandono parental no Brasil. É daí onde o filme forma seu conflito, levantando o questionamento se o personagem vai assumir a responsabilidade e ser o pai que ele não teve.
Tanto o roteiro quanto a ótima interpretação dos artistas envolvidos fazem de ‘Rebento’ uma viagem extremamente necessária e importante. A química entre os personagens é capaz de passar um forte realismo sobre as relações dos mesmos, tanto familiares quanto românticas. Suas cenas são extremamente bem estruturadas para reproduzir a pressão exercida nos personagens pela notícia da gravidez de Jéssica.
Uma saudável relação maternal entre Jussara e Pedro, desde a juventude do garoto que cresceria para ser Zói, é um importante artifício usado pela trama. Juliette Nascimento interpreta a mãe do personagem na atualidade e a jovem Jéssica Moura emula muito bem a sua personagem quando mais jovem, sendo as duas capazes de dar vida a uma bela relação entre mãe e filho.
A importância de um homem negro estar contando a história desse jovem negro e a sua escolha de abraçar o papel de pai é extrema. Muitas vezes na cultura os personagens negros são, majoritariamente, escritos por pessoas brancas. No próprio filme o personagem Lôro (Gabriel Piedade) sugere o caminho de Zói para abandonar a namorada, um pouco depois de sugerir que o mesmo entre para o tráfico. Essa interação, embora breve, pode ser lida com o viés de como por muito tempo era essa a única realidade mostrada para personagens negros.
Usando de sua montagem – tanto de forma visual quanto de forma sonora – o filme consegue ser bem particular ao contar uma história. A forma não completamente linear da narrativa, de como as cenas têm um peso dramático importante para a decisão do protagonista, é essencial para fazer de Rebento um filme tão aclamado. Além disso, ou aliado a isso, ter um filme com uma equipe majoritariamente negra e com elenco principal todo negro, capaz de quebrar vários estereótipos narrativos é extremamente importante.
Precisamos de mais obras como Rebento.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.