A Todo Vapor! – Literatura nacional encontra steampunk estrangeiro

Com o alto volume de séries através dos streamings, sempre é difícil escolher qual a melhor série do ano (mesmo com a vitória merecida de Watchmen no Emmy). Mas é fácil indicar uma das piores séries do ano: A Todo Vapor!, lançado pela Prime Vídeo.

Antes de tudo, vamos para a sinopse oficial: “Em 1908, num passado retrofuturista, os heróis Juca Pirama e Capitu Machado são chamados à vila antiga dos astrônomos, no interior de São Paulo, para investigar uma série de crimes insólitos. Um grupo de super-heróis inspirados nos clássicos da literatura brasileira! Você já imaginou?”

Do jeito que está, não imaginei.

Devo admitir que uns dois ou três atores no elenco são realmente bons, mesmo sendo prejudicados pelo roteiro e uma direção caótica. Tenho apreço por formatos variados de tempo de episódios. A Todo Vapor oscila entre 16 e 21 minutos. O figurino faz jus a temática “steampunk”, levando em conta a falta de orçamento para figurantes vestidos a caráter na insólita vila dos astrônomos.

Mas infelizmente os pontos positivos estacionam aqui.

A maioria das atuações são amadoras. Tanto pela falta de preparo e direção quanto pelo texto. Falas são expressadas de maneira robótica, com uma artificialidade tão aparente que é difícil acreditar em algumas escolhas para o elenco ou a falta de um trabalho maior com este.

A montagem tem muitas falhas. Cortes na mesma cena com erros de continuidade, com falta de elementos de cena de uma transição para outra. A fotografia as vezes é até ofuscada pelos efeitos visuais e texturas. Porém, as escolhas de luzes são importantes para que numa mesma cena não oscile entre luz natural e luz artificial. Carece de identidade e esmero fotográfico.

Agora vamos para o ponto em que este que vos escreve acha mais grave: o roteiro.

Grave porque Roteiro é a alma de qualquer obra audiovisual. É nele que enxergo suas falhas mais pontuais. Diálogos mal escritos. O texto parece tanto ser petrificado e levado ao pé da letra que alguns trejeitos como simples “sim; claro; contudo;” soam com um maneirismo abundante que escapam da formalidade de um início de século 20. Cenas desnecessárias que atrapalham a narrativa em capítulos pequenos, perdendo uma possível otimização deles.

Outro ponto negativo dentro do roteiro é sua proposta: literatura brasileira steampunk. É bastante compreensível e  até nobre utilizar nomes da nossa ficção brasileira para protagonizar uma aventura nesse cenário a vapor (mesmo que, no caso da série, nem tanto assim, pois a presença de outras tecnologias paradoxam o tema steampunk. Mais correto afirmar que é “retrofuturista” como descreve a sinopse).

O problema dessa proposta que me desagrada é algo comum nas maioria das histórias contadas hoje em dia, principalmente na nossa ficção: o sobrepujar do elemento de fora diante das nossas características brasilianas. “A Todo Vapor!” poderia ser uma história de personagens da ficção brasileira com características desse vitorianismo europeu presente no seu retrofuturismo, mas é o triste inverso: a brasilidade serve de muleta para que o maquinário estrangeiro caminhe sobre a São Paulo de 1908, que mais parece uma tentativa de Veneza interiorana do filme Liga Extraordinária (The League of Extraordinary Gentlemen, 2003). A sensação é que temos Verne, Wells e Gibson (em tentativas) acima de uma poeira de Machado de Assis, Gonçalves Dias e Raul Pompéia. O maior sentimento de viralatismo é quando usamos nossa rica cultura brasileira como escada para o já invasor brilhar. Entretanto, pior seria se a vila fosse chamada de Astronomers’ Village.

Dito tudo isso, entrei sequer no mérito do orçamento. Como cearense que acompanho de perto a nossa produção local, sei bem como é trabalhar com recursos quase inexistentes. Mesmo assim, muita coisa excelente ganha o mundo em todos os quesitos abordados para tecer a crítica. Mas infelizmente a boa intenção não salva “A Todo Vapor!”.


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