Alice Júnior – O protagonismo trans no Brasil

Ao longo da história do cinema, histórias adolescentes nunca faltaram, mas sempre houve um certo olhar direcionado mais à branquitude e também a cisgeneridade. Se não um, o outro, mas na maioria das vezes, é de lei, filmes ‘coming of age’ com foco em histórias de jovens cis e brancos. O protagonismo raramente é dado a outras partes da sociedade e, às vezes, quando é, a obra pode seguir estereótipos não muito saudáveis para construção de um imaginário sobre o grupo destes protagonistas.

O filme Alice Júnior (2019), com roteiro de Luiz Betazzo, produção de Andréa Tomeleri e dirigido por Gil Baroni, quebra com o padrão cisgênero dessa ideia de filmes sobre amadurecimento de jovens, e é protagonizado por uma mulher trans, Anne Celestino Motta. Tendo uma protagonista de energia tão forte e capaz de canalizar sua personagem tão bem, o filme ganha muito lidando com um enredo básico e até meio batido. 

Um dos pontos fortes do longa é a inovação ao contar a história de uma jovem trans segura de sua identidade e com o apoio de sua família. Em sua história Alice não é colocada em um lugar de auto marginalização, mesmo lidando com um ambiente extremamente tóxico e conservador. A narrativa a coloca para sofrer transfobia, mas esse não é, nem de longe, o foco do filme, pois o mesmo é sobre uma jovem ansiando por seu primeiro beijo. Existe uma grande importância em não perpetuar uma narrativa de sofrimento como única possibilidade para travestis.

Falando sobre a protagonista do filme, a própria atriz é YouTuber e tem isso em comum com sua personagem. Anne Celestino nos apresenta uma personagem forte e muito boca suja, consciente sobre seu local numa sociedade patriarcal, machista e transfóbica. A atriz tem um bom alcance mostrando as múltiplas facetas de Alice, especialmente por ser capaz de fugir muito de uma personagem trans extremamente oprimida e trazer uma heroína disposta a mudar às amarras dessa sociedade preconceituosa. 

Talvez, voltando um pouco aqui, a importância da relação saudável entre Alice e o seu pai, Jean Genet (Emmanuel Rosse), e a forma como o próprio é extremamente defensivo sobre sua filha e o respeito por sua identidade. Os dois possuem uma boa química em cena e certamente conseguem vender a ideia de pai e filha. A relação mostrada na obra não é algo muito comum de se ver quando se trata de pais e filhas trans, lembrando-me a relação mostrada na série Euphoria (2019 -) por Jules (Hunter Schafer) e seu pai.

Existe um uso da ideia de tecnologia dentro do filme que, apesar de funcionar muito bem, ainda não é tão utilizado quanto poderia ser. Afinal, é através destas redes sociais onde temos a oportunidade de ver Alice interagindo com outras pessoas trans, e o filme ganharia muito se permitisse contar uma história mais transcentrada. Isso pois a narrativa se passa contando a história de Alice, mas a mostrando em meio a um ambiente cheio de personagens cis. Não é como se não houvessem outres jovens trans em interiores, por mais conservadores que sejam. Ambientes conservadores não significam a não existência de pessoas cis hétero. 

Para quem é esse filme? Questionar isso é reconhecer o fato do audiovisual ainda ser, especialmente aqui no Brasil, uma arte voltada para uma ‘maioria’ cis e branca. A obra é realizada por um equipe majoritariamente cis, inclusive seu diretor e roteirista, que além de cis são homens, e isso termina por refletir no resultado. Podemos dizer que sim, a obra tem um bom ponto de partida, mas sua execução merecia ser feita de melhor forma. Os diálogos da obra são extremamente caricatos e muitas vezes sequer se vendem como diálogos reais, além do uso frequente de bordões datados da comunidade LGBTQIA+.

Por ter apenas um personagem negro relevante, interpretado por Matheus Moura, a narrativa falha extremamente em sua representação étnica. Seu personagem tem uma função dramática de não ser transfóbico e de ser desejado pela protagonista como um “fruto proibido”. Talvez reconhecendo ainda o racismo presente na audiência brasileira, falar sobre ser trans e dar profundidade à personagens étnicos seja demais (frase a ser lida com tom de ironia). No final, se uma história sobre uma personagem trans branca termina por perpetuar estereótipos narrativos dialogando com o racismo, termina por falhar. 

Sendo um filme lançado nos cinemas brasileiros, mesmo em momento de pandemia, é um marco Alice Júnior contar a história de uma jovem trans nas telonas. Cinema é uma arte colaborativa, e pensar nos efeitos sociais do mesmo é extremamente importante. Alice Júnior é um agradável filme adolescente e bem sucedido ao contar uma história para o público cis e branco, deixando um pouco a desejar quando se trata de deixar pessoas trans tomarem as rédeas de suas histórias.


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