Em 25 de Novembro de 2016 a Netflix lançou a primeira temporada de 3% (2016 – 2020), uma série de ficção científica brasileira criada por Pedro Aguilera. Se passando num futuro não muito distante, a sociedade não possui mais muitos recursos e grande parte das pessoas passa por dificuldade e necessidade. A única chance dessa população é passar por um Processo para ir para o local conhecido como Maralto, onde existem muitas oportunidades.
O foco da primeira temporada era exatamente acompanhar esse grupo de jovens de 20 anos passando pelo Processo para alcançar o Maralto e a promessa de uma vida melhor. O design de produção e a direção de arte da primeira temporada muito se diferem das demais. Talvez por ser a primeira temporada da série não houvesse tanto investimento em ambientes e acessórios, passamos boa parte da temporada reclusos dentro do prédio do Processo.
Isso permitiu a série a investir nos psicológico dos seus personagens, na mitologia por trás da série e na ideia de casal fundador. Mitologia essa parte do arco da segunda temporada, revelando a verdade sobre o casal fundador ser na verdade o trio fundador. Embora toda a sociedade desse mundo pós apocalíptico acredite na existência de um casal responsável pelos avanços tecnológicos do Maralto e sua criação, a temporada explora o passado dessa sociedade e revela o fato do projeto ter sido desenvolvido por um trio onde os três tinham envolvimento romântico.
A descoberta do envolvimento do casal fundador num assassinato e na destruição do continente por parte de uma das protagonistas resulta na terceira temporada num local chamado de A Concha. Nem o Maralto e nem o Continente, a Concha foi criada com um propósito de acolher a todas as pessoas. Durante a temporada o local é sabotado pelas forças militares do Continente e é necessário um processo para decidir quem ficará na Concha até eles conseguirem gerar suprimentos o suficiente para acolher a todos novamente.
Quando começamos a quarta temporada temos um pulo temporal, onde a Concha já se mostra como um local estável e contendo a líder das forças militares do Maralto, Marcela (Laila Garin). Liderada por Michelle (Bianca Comparato), a Concha está com produção total de suprimentos e prosperando. As pessoas dentro da Concha vivem em harmonia, mas ainda há problemas e sentimentos de vingança contra aqueles do Maralto responsáveis pelos acontecidos do passado.
Após um convite feito pelo Maralto, um grupo de pessoas da Concha se reúne e decide aproveitar a possibilidade para sabotar o Maralto como haviam conversado já no final da temporada anterior. Nessa expedição até o Maralto vão os personagens previamente introduzidos na série, Joana (Vaneza Oliveira), Rafael (Rodolfo Valente), Marco (Rafael Lozano), Natália (Amanda Magalhães) e Elisa (Thais Lago). Eles aceitam o convite sem saber do golpe dado no Maralto pelo irmão de Michelle, André (Bruno Fagundes). Ao avanço da temporada os personagens são mais uma vez forçados a encarar grandes desafios e questionar seu compromisso com sua missão ou com o que consideram certo.
Uma das maiores personagens da série durante seus quatro anos permaneceu sendo Joana, uma mulher cheia de facetas e também cheia de revoltas. É necessário ressaltar a presença do estereótipo conhecido como ‘angry black woman’ (mulher negra raivosa), aqui especialmente olhando pela perspectiva da personagem na série. Abandonada quando jovem, Joana sempre lutou por si mesma, pela sua vida, isso foi um arco muito bem desenvolvido ao longo das temporadas. Mesmo quando a personagem se permite entrar numa relação com Natália, a mesma ainda tem dificuldade em compreender o que é não estar só. Sem muitas pretensões, Joana foi movida por seu compasso moral e o mesmo permitiu a mesma se imortalizando como uma grande heroína ao longo da série.
Enquanto 3% parte de muitos lugares comuns dentro de uma ideia de mundos pós apocalípticos, a série permitiu se expandir para além de ser só mais uma série sobre um mundo depois do final. Em uma de suas protagonistas, Michelle, cujas motivações iniciais são mais pessoais e então passam a ser algo mais profundo e a fazem se tornar uma líder de uma própria sociedade. Nesta última temporada a Michelle inocente e envolvida na Causa se confirma como uma grande revolucionária disposta a lutar pela justiça. A trajetória de Michelle e de Joana são extremamente diferentes, mas as mesmas terminam trilhando caminhos muito semelhantes. As atrizes Bianca Comparato e Vaneza Oliveira fizeram um incrível trabalho, se permitindo amadurecer junto de suas personagens ao longo das temporadas.
A construção dos antagonistas, representados aqui em sua quase totalidade pelos habitantes do Maralto, ao longo da temporada, é muito cuidadosa. A crença dos habitantes do Maralto no ‘Casal Fundador’ e como isso é trabalhado em flashback para tornar os dois uma ideia para além de quem eram dão uma maior profundidade ao enredo. É como se aqueles personagens do presente, mesmo como antagonistas, sejam vítimas de uma crença pautada na meritocracia e em como existem os merecedores de uma vida enquanto os demais merecem restos. A realidade da série, mesmo se tratando de uma ficção científica ambientada num mundo pós apocalíptico, não deixa de refletir muito da sociedade moderna.
Trabalhando com duas narrativas, a de passado e a de presente, como vinha fazendo desde sua origem, a série se conclui como uma bela melodia e aula de história. Consegue assim também fazer críticas certeiras ao mundo moderno e real através da ficção. 3% conclui sua história sendo uma incrível história ficcional com o pé no real, personagens fortes e surpreendentes e ousada. Afinal, quantos seriados que são histórias de ficção científica podemos falar que incluíram protagonistas não brancos, poliamor, foco num relacionamentos sáficos e a subversão de heróis e vilões como a série faz desde sua primeira temporada?
Em seu episódio final, de tirar o fôlego, 3% consegue dar todos os nós necessários para encerrar seus enredos da melhor forma possível. Não se trata de um felizes para sempre, mas de um digno começo e ao mesmo tempo um ponto final nas narrativas criadas ao longo da série. Mesmo bebendo de muitos gêneros, a série conseguiu ser bem inovadora em suas escolhas narrativas e estéticas. A primeira produção brasileira da Netflix teve uma bela jornada e uma magnífica conclusão, e todas as suas temporadas estão disponíveis no catálogo do serviço de streaming.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.