Claire Dennis, em sua carreira, até esse momento, se interessou em falar de pessoas, mais especificamente da condição de ser humano. É seguro dizer que seus primeiro filmes integraram e ajudaram a formar uma nova onda no cinema mundial que ficou conhecida como “cinema contemporâneo”. Em algum momento, porém, o cinema contemporâneo como um todo, e seus autores e autoras, caíram no cansaço da fórmula; alguns realizadores continuaram fazendo mais do mesmo, enquanto outros começaram a tentar se reinventar dentro da estética. Claire Denis se encaixa nesse último caso. A realizadora francesa desde sempre flertou com o filme de gênero, mas isso tem ficado cada vez mais forte em seus últimos longas, como em Bastardos (Les Salauds, 2013), onde ela traz elementos do horror. High Life (2018) provavelmente é a consolidação dessa relação.
O filme é um thriller de ficção científica com o estilo inconfundível de Denis. A trama se passa inteira, salvo alguns flashbacks, no interior de uma nave espacial que está aparentemente em uma missão para desenvolvimento de um projeto científico. O longa começa com o protagonista, Monte (Robert Pattison), consertando um problema externo na nave enquanto sua filha, Willow, que ainda é um bebê, está sozinha no interior, chamando por ele através do sistema de áudio. Logo entendemos que os dois estão completamente sozinhos naquele lugar. Não há outros tripulantes, não há comunicação com a Terra e não parece haver esperança de retorno.
Dentre os flashbacks que não dizem quase nada, são apenas fragmentos de memórias do personagem – imagens que nos dão sensações e pistas, mas sem maiores explicações – entramos em um outro tempo da história onde vemos o que aconteceu naquela nave até que só sobrassem os dois. Assim, o filme vai se adensando aos poucos.
Essa estruturação do roteiro, bem como alguns temas que ele aborda, me lembraram bastante Desejo e Obsessão (Trouble Every Day, 2011), um dos longas anteriores de Denis. Nele, temos quase nenhuma informação do passado – um passado que está sempre presente na vida atual do personagem – só temos o suficiente para adivinhar um pouco de sua história pregressa e do por que ele está ali.
Uma outra semelhança entre os dois filmes é o questionamento sobre os limites da ciência. Tanto lá, como aqui, temos personagens estudiosos que estão dispostos a tudo em prol do conhecimento. Talvez em High Life isso seja extrapolado um pouco mais por alguns fatores: temos um ambiente afastado da sociedade e de seus olhos; a cientista (Juliete Binoche) que trabalha em seus experimentos sozinha, não responde a nenhum superior e não tem supervisão de seu trabalho. Nesse sentido, ela é livre para fazer o que bem entender sem pensar em consequências éticas além de sua própria consciência. Além disso, suas cobaias humanas são, no seu entendimento e das pessoas que os colocaram nessa situação, desprovidas de humanidade por terem cometido algum tipo de crime. Assassinos, ladrões, refugiados, são isso e não passam disso. Não têm nome, não têm identidade. Se seus corpos não servem mais para viver em sociedade, que a sirvam de alguma outra forma.
Em entrevista concedida ao Film Comment Talk, Claire Denis disse que às vezes se pegava pensando nas pessoas que trabalham em submarinos, em como eles ficam até 60 dias embaixo d’água, isolados do mundo. E como isso também se aplicaria ao espaço. O convívio com desconhecidos, a impossibilidade de movimento fora daquele espaço fechado, a perda da privacidade visto que o espaço do submarino/nave é comum a todos que ali habitam. Assim, nessas condições, nossos instintos mais primitivos estariam aflorados. Estaríamos mais próximos do nosso lado animal. Seríamos constantemente instáveis. Os personagens acabam chegando em certo momento nesse estado e o filme os segue. É difícil saber o que vai acontecer a seguir. Eles estão convivendo normalmente até que alguém bate em alguém e logo em seguida, num mesmo movimento, eles se abraçam. A instabilidade das personagens vai sendo trabalhada até transformar aquele lugar numa panela de pressão com pequenas explosões a todo momento.
Claire Denis nos entrega, novamente, um filme com um trabalho corporal de seus atores impressionante. Existe uma organicidade na forma como os corpos se movem e interagem e a câmera está ali acompanhando, fazendo parte da dança. O filme consegue estabelecer a paternidade não só no que diz a respeito aos dois personagens, mas na relação corporal entre Robert Patisson e a bebê Scarlett Lindsay. Eles conseguem estar em tal sintonia que parecem mesmo ser carne da mesma carne.
Além disso, a diretora nos traz uma viagem ao espaço que não é uma aventura, pelo contrário, é melancólica. Não há esperança. Na entrevista já citada anteriormente, Denis disse que o astrônomo que fez consultoria para o filme insistia com ela de que, na velocidade que a nave viajaria, a imagem que se veria do espaço lá fora seria do nada, um completo breu. Nem luz, nem estrelas. A diretora acabou achando que essa imagem seria tão potente quanto um céu repleto de luzes. A chave de fenda que cai para o nada logo na primeira cena resume o que veremos a seguir.
Apesar de não ter gostado tanto do uso da narração em boa parte do filme por causa da redundância das informações, isso não atrapalha completamente a imersão na história. High Life, para mim, já é um filme marco na carreira de Claire Denis. Provavelmente o primeiro passo em uma nova direção.
Uma capricorniana Bacharel em Cinema e Audiovisual. Diretora, roteirista, curadora e uma DJ formidável nas horas vagas. Grenda divide seu tempo entre o cinema, o cigarro e o litrão barato. Sabe dar conselhos e sermões como ninguém e dentre todos os seus vícios, o maior deles é a tabela de Excel.