Scooby! O Filme – Uma ode aos clássicos animados

Chega um tempo na nossa vida que a gente se conforma sobre os produtos que ocupam lugares eternos no mundo. O cachorro Scooby-Doo é uma delas. Ele já existia antes de você nascer, continuou existindo durante toda sua vida e vai continuar a ser lançado depois que você morrer, mesmo que você viva 120 anos.

A primeira série animada do dogue alemão foi lançada no final da década de 1960 e se chamava Scooby-Doo, cadê você? (Scooby Doo, Where Are You?, 1969 – 1970). Desde então a franquia criada por Joe Ruby e Ken Spears nunca deixo de ser renovada. De tempos em tempos ela passa por uma repaginada, se atualiza com a modernidade e tenta conquistar novos públicos, sem perder o apelo com os mais antigos – hoje, adultos (até minha mãe reconhece o Scooby, acreditem).

Em 2019 foi anunciado mais um longa metragem com a turma da Máquina de Mistério. Quando me deparei com o trailer eu pensei “Ok, mais do mesmo. Eles nunca se cansam”. A nova animação, dessa vez totalmente em CGI, pretendia contar a origem da amizade do cão com seu eterno parceiro, o Salsicha. O longa seria lançado nos cinemas em março deste ano, mas, por causa dos problemas causados pela pandemia da Covid-19, seu lançamento foi adiado e depois a direção da Warner decidiu jogar direto para os serviços de streaming.

Eu sentei na frente do sofá e apertei o play pra ver essa animação com uma despretensão imensa. Queria só passar o tempo e já estava meio ressaqueado de filmes de terror – havia acabado de ver dois filmes de tubarão. E só de ver a abertura de Scooby! O Filme (Scoob! – 2020) eu já me derreti todo! Eu vou me sentir muito velho dizendo isso… A direção de arte ficou a cargo de Michael Kurinsky, que já trabalhou em filmes como Hotel Transilvânia 2 (Hotel Transylvania 2 – 2015), Tá chovendo Hambúrguer (Cloud With a Chace of Meatballs – 2009) e Hércules (Hercules – 1997). Poucas vezes eu percebi um trabalho de pesquisa ao material original como vi aqui. Os detalhes dessa animação são de uma dedicação que só tendo mesmo muita bagagem referencial para perceber tudo que tá se passando ao redor.

Quase todos os elementos clássicos estão presentes: as perseguições por corredores em que os personagens trocam de portas e, eventualmente, acabam se esbarrando, as roupas dos personagens que, como de costume, se modernizam, mas preservam os elementos clássicos, até o “jeitinho” como eles correm “em equipe” e a posição das mãos, muito característica dos desenhos na década de 70, foi preservado (ou revivido). A forma como o Salsicha caminha é a mesma, sério! No entanto, a mais grata surpresa certamente está nas participações especiais de personagens clássicos da Hanna Barbera como Falcão Azul e o Bionicão (Dynomutt Dog Wonder, 1976 – 1977), Dick Vigarista (Wacky Races, 1968 – 1970) e – a mais divertida e inesperada de todas – o Capitão Caverna (Captain Caveman and The Teen Angels, 1977 – 1980). O filme ainda conta com participações de pessoas reais como Simon Cowell e de referências à Mulher-Maravilha e Ruth Bader Ginsburg, segunda mulher a servir a Suprema Corte do Estados Unidos.

Além de tudo isso, é impossível não perceber a alusão que a nave do Vigarista no filme faz ao carro clássico que ele usava no desenho Corrida Maluca, onde ele fez sua primeira aparição. E ao desejo pulsante que a gente tem de ver o Mutley, só por saber que o vilão é o Dick. Afinal, a dupla se popularizou por estar sempre junta – e pela peculiar risadinha do cachorro capanga.

Eu sei que é muita referência, e olha que só citei as mais óbvias… E sei também que essa riqueza de detalhes pode tanto enriquecer como atrapalhar a experiência – Matrix (The Matrix, 1999) que o diga. Porque, provavelmente, pra sacar todas os detalhes, você tem que ser muito velho ou muito viciado em animações antigas. E, nesse caso específico, se esse saudosismo não tocar seu coração como fez com o meu, infelizmente, não vai sobrar muita coisa pra se aproveitar na experiência. Sem contar que Scooby! em CGI não é bem uma novidade nos cinemas…

Corta pra 2015. Era metade desse ano quando os cinemas começaram a divulgar o trailer de Snoopy & Charlie Brown: Peanuts, O Filme (The Peanuts Movie, 2015). Esse, diferente de Scooby!, eu fiquei bastante excitado pra ver. Tive que esperar até o final do ano. Mas a espera valeu cada diazinho. Peanuts conseguiu trazer de volta não só as referências visuais das animações antigas de Charlie Brown e seu cachorro, mas também toda a sensibilidade e emoção que as histórias de Snoopy nos proporcionavam. Toda a filosofia que Charles M. Schulz inseria na sofrida adolescência do protagonista voltou nesse filme em CGI. De uma forma mais leve, mais implícita, eu concordo. Talvez numa tentativa de conquistar também o público infantil, o texto é mais simples. Mas entender como tudo que o Charlie Brown faz de maneira tão atrapalhada reflete os anseios da fase difícil que é a adolescência, continuou sendo o ponto principal do enredo. Infelizmente, seu primo distante, que também conta a história de um garoto e seu cachorro, passou longe de ter uma história assim, tão cativante.

Muito provavelmente, diferente do que pareça que estou dizendo, as duas animações são extremamente parecidas nesse sentido. As duas são revivals de desenhos antigos e trazem nelas a mais pura essência deles. Como Peanuts sempre tratou das transformações pelas quais passamos durante nosso amadurecimento, sua versão moderna preservou essa ideia. Em Scooby!, se mantiveram os elementos detetivescos e de terror infantil misturado com comédia. Afinal, Scoob-Doo nunca foi um desenho que se propôs a pensar a realidade de forma crítica – será mesmo? Seja como for, um dos principais componentes se perdeu no filme de 2020: o mistério. A surpresa que temos quando o vilão é desmascarado no final da história e que revela uma pessoa real por debaixo da fantasia de monstro, que nunca era alguém muito óbvio e que sempre tinha planos escusos para roubar terras, manter propriedades, espantar trabalhadores ou até mesmo a polícia – alguém falou em refletir sobre a realidade?

É uma pena que, mesmo que o filme seja muito melhor que seus antecessores com pessoas de carne osso – Scooby-Doo (2002),  Scooby-Doo 2: Monstros À Solta (Scooby-Doo 2: Monsters Unleashed, 2004), Scooby-Doo! O Mistério Começa (Scooby-Doo! The Mystery Begins, 2009) e o esquecível Scooby-Doo E A Maldição do Monstro do Lago (Scooby-Doo! Curse of The Lake Monster, 2010), e que traga uma mensagem muito positiva e um pouco emocionante sobre amizade, ela tenha jogado fora metade do seu charme quando se propôs a revelar logo de cara quem seria o vilão. Sem disfarce, sem mistério. E o que é a equipe de Scooby-Doo senão “um bando de garotos xeretas” que desvendam mistérios?

Por fim, se você é que nem eu (velho) e adora se deliciar com essas obras cheias de referências como é o caso de Jogador Nº 1 (Ready Player One, 2018), Scooby! O Filme vai ser uma experiência bem agradável. Mas não espere uma grande aventura, ou muitas surpresas na trama. O filme é mediano. É divertido, apenas. Embora, algumas vezes, ser divertido é apenas o que basta.


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