Existe um lugar perfeito ou criamos nosso lugar perfeito? Ou talvez já estejamos tão acomodados que pensamos não ter nada a mudar? Se há um lugar idôneo pode muito bem ser Shaker Heights, Ohio, cidade tão bem bolada, nas casas, suas cores, a grama, que complementa a socialite Elena (Reese Witherspoon). Casada com Bill (Joshua Jackson), jornalista e mãe de quatro filhos, a sra. Richardson tem seu universo influenciado com a chegada da enigmática artista e solteira Mia Warren (Kerry Washington) e a filha adolescente Pearl (Lexi Underwood).
Em tempos que estamos cada vez mais carentes de nos tornamos conscientes, o drama social Little Fires Everywhere (2020) faz um convite à reflexão ao compor sua narrativa com a leitura dos personagens que rodeiam realidades tão diferentes. Um incêndio pode começar de diversas formas, mas a faísca aqui, até tomar todas as partes, vem de Elena. No seu contexto de perfeição, ter uma carreira profissional, o filho Trip (Jordan Elsass) como atleta, o doce Moody (Gavin Lewis), a filha mais velha Lexie (Jade Pettyjohn) moldada a seus trajetos e a “rebelde” caçula Izzy ‘Isabelle’ (Megan Scott), os dias determinados para o sexo com o esposo, poder posar com a família vestida do melhor tecido e calçados não poderia ser mais exemplar para a comunidade que vivem.
Por isso, ao ver Mia e filha, nômades, dormindo em um carro, nada mais acessível ao status quo e alter-ego do que oferecer um emprego. Foi esta a faísca que Elena não esperava estar riscando para revelar o que há de mais problemático no racismo estrutural. E é típico que quando se critica o preconceito velado, pessoas que partilham do mesmo perfil logo mostram a outra mão como justificativa do que fazem, na intenção de invalidar onde estão sendo apontadas: quando jovem participei de movimento pelos direitos das mulheres, tenho bons filhos, sou uma boa pessoa. Repetir e repetir esse discurso para si mesma, várias e várias vezes não retira a ideia de que para ela, a única linha torta em sua vida foi dar a luz a gravidez indesejada, a Izzy.
“Você não fez más escolhas. Você teve boas escolhas. Opções que teve por ser branca, rica e com títulos”. Frase ideal para definir o complexo de branca privilegiada e salvadora de Elena, no momento em que a série expôs o racismo estrutural em que ela acha que em todos seus feitos, só teve boas intenções ao tornar Mia sua “empregada”, inquilina, e dali surgiu uma suposta amizade nutrida por seu incômodo e desconfiança pela personalidade de Mia. Abrindo mais o leque, as discussões sociais e raciais ganham ainda mais nuances ao explorar a maternidade. Além do conflito entre Elena e Izzy, o mistério por trás do passado de Mia e o nascimento de Pearl abre o debate ao contar as escolhas difíceis em que artista plástica e artesã assumiu para proteger sua filha.
Na outra ponta da narrativa, temos o elemento final que culmina em mais manifestações da personalidade contraditória e conservadora de Elena: adoção. Ao se dispor a ajudar na causa de uma chinesa imigrante que quer recuperar a filha após abandoná-la, Mia desestrutura de vez o preconceito velado de Elena, que não poupa esforços para defender a outra mãe, sua amiga branca, que luta pela custódia da pequena May Ling. Não entende os motivos de Mia para ter Pearl ao seu lado e tampouco as condições que impediram Bebe Chow ( Lu Huang) de sustentar a bebê quando recém nascida, mas nada impede de burlar todas as regras do bom senso, recursos e barreiras no intuito de conceder o ganho a Linda (Rosemarie DeWitt). A realidade de privilégios impede a percepção em outras situações e desenvolver empatia? Ou a capacidade afetiva vale apenas para reconhecer e simpatizar aos atributos do próprio umbigo?
O justo seria ganhar a mãe quem deu luz a criança ou a mãe que prestou carinho, cuidado e atenção por um ano? A medida que traz contrastes maternos tão distintos, Little Fires Everywhere brilha com o protagonismo feminino de suas personagens tecendo ainda espaço para falar de sexualidade. O que faz a minissérie colaborar ainda mais a representatividade: dos oito episódios, seis foram dirigidos por mulheres, enquanto só um roteiro foi escrito por homem. Também, elevando o cargo de produtoras executivas, Kerry e Reese sustentaram os conflitos de seus papéis com performances consistentes — e até as caras e bocas recorrentes de Kerry puderam ser relevadas pela atuação de Tiffany Boone vivendo a versão mais jovem de Mia, copiando tão bem as expressões reprimidas.
Abraçando com exatidão o nome que encabeça a obra, o show conduz um desfecho simbólico em alegoria a se desfazer das raízes conservadoras e preconceituosas que permeiam as figuras alocadas em Shaker Heights e, principalmente, os Richardson. Contudo, até chegar ao nível mais alto do fogo e engrenar com sua trama, a atração seguiu por um ritmo morno, alternando entre conveniências e didatismo em várias frases de efeito ditas por Mia. O que sobressai sobre as oscilações, é o enredo ainda misterioso atrelado aos personagens.
Baseada no livro homônimo de Celeste Ng, a minissérie criada por Liz Tegelaar soube conduzir bem o material chave, visada numa abordagem que permitiu aproveitar criativamente a obra de Celeste, a ponto de não deixar pontas para um retorno.
Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.