Emma. – Humor, ironia e uma mesa cheia de biscoitos

Emma Woodhouse – bonita, inteligente e rica. De todas as heroínas dos livros, finalmente temos uma que não apenas tem todos os elementos da felicidade e plenitude, mas também tem certeza de que tem. Ai ai, Austen, com certeza você estava se sentindo particularmente debochada quando escreveu essa personagem, não é?

Lançado depois de Mansfield Park e antes de Persuasão, Emma foi o último livro inédito que Jane Austen (1775 – 1817) publicou em vida e encarna a ironia da autora desde a dedicatória: quando o então príncipe regente pede que Jane dedique um livro a ele, ela obedientemente e humildemente o faz – nos seus termos. Além disso, Emma é o único dos seis grandes romances de Austen a ter no título o nome de uma pessoa e, bem, a autora não costuma dar ponto sem nó.

E é aqui que entra Emma. (2020). Nessa adaptação dirigida por Autumn de Wilde, com Anya Taylor-Joy interpretando Emma Woodhouse, vemos encarnar de forma brilhante esse humor tão peculiar da autora. Veja bem, não é fácil traduzir para as telas os detalhes do humor inteligente que Jane Austen emprega sem parar em seu abundante discurso indireto livre e em seu narrador opinativo (e, se me permite dizer, cheio de opiniões), mas essa adaptação conseguiu, em muitos sentidos, ainda trazer Jane consigo para outra linguagem.

Emma Woodhouse (Anya Taylor-Joy) é uma jovem inteligente, bonita e rica que logo no início do filme se depara com uma mudança significativa em seu lar: sua amada governanta Srta. Taylor (Gemma Whelan) está se casando, e tornando-se Sra. Weston. Apesar de muito triste porque perdeu a companhia de sua grande amiga, Emma se convence de que foi a responsável por unir o feliz casal – e este é o início de sua carreira de casamenteira. Logo ao tornar-se amiga da jovem Harriet Smith (Mia Goth), ela decide uni-la ao jovem pároco Sr. Elton (Josh O’Connor), em detrimento de uma relação prévia que Harriet já tinha com o fazendeiro Robert Martin (Connor Swindells). Essa é a base para um desenrolar de tantas perguntas para esta curiosa protagonista sempre cheia de respostas.

Várias coisas me chamaram a atenção nessa adaptação. Emma. traz um humor de sutis mudanças de olhar e de postura que se mistura com a expressão caricata de personagens e com algumas cenas que nos pegam de surpresa. Aqui, temos uma Emma que levanta a saia para se aquecer perto da lareira, que se esconde atrás de objetos de vitrine para fugir de pessoas. E o Sr. Knightley (Johnny Flynn) aparece logo no começo com a bunda de fora. O filme é permeado por cenas de uma sensualidade sutil que se mescla com um humor inteligente, e se eu fosse uma jovem senhora do período regencial não teria escrúpulos de falar o quão desavergonhada é essa versão de Emma. (Ainda bem que eu não sou).

E é aqui que o filme me conquista. Não é apenas sobre ativamente tentar traduzir o tipo de humor que Austen fazia, mas sim adaptar essas pequenas nuances para um humor mais próximo da atualidade, uma ironia da qual nós, interlocutores de mais de duzentos anos depois, conseguimos nos aproximar mais. Inclusive incluo aqui uma salva de palmas para Josh O’Connor e Tanya Reynolds, que interpretam o Sr. e a Sra. Elton: eu nunca havia conseguido nomear direito o que esse casal me causava quando lia o livro, mas agora, vendo o filme, consegui finalmente entender esse profundo sentimento desconcertante de vergonha alheia

Esta adaptação de Emma se apropria, ainda, da crítica desenvolvida sobre Jane Austen ao longo dos anos, e escancara alguns elementos que nem sempre ficavam visíveis. Neste filme, vemos muito fortemente as distinções de classe social que sempre permearam de forma discreta os romances de Austen, com discussões acerca de casamentos como contratos sociais, posições sociais como guia nas relações existentes, entre outras pequenas alfinetadas que ficam agora mais visíveis do que seriam para um leitor desatento. 

Emma. traz, ainda, um elemento que achei muito curioso: em diversas adaptações de Austen, eu não tinha visto, ainda, uma quantidade tão abundante e tão presente de criados. Nos livros de Austen, em geral, a presença dessas figuras não é muito significativa, e temos pouquíssimas falas. Mesmo quando pensamos no riquíssimo Sr. Darcy de Orgulho e Preconceito (2005), a quantidade de criados em Emma. chega a ser desconcertante. Temos que ver os criados colherem flores para Emma, trocarem as roupas dos personagens, moverem para lá e para cá o biombo que impede que o hipocondríaco Sr. Woodhouse (Bill Nighy) sinta uma corrente de ar frio. É, porém, um elemento que enriquece as cenas – quem são essas pessoas que estão sendo servidas? Que papel na sociedade elas exercem? Quem é Emma, esta jovem bem-nascida que tem o privilégio de decidir nunca casar? E cada virada de olho de um valete endossa ainda mais o ridículo de algumas cenas, como um reflexo de uma expressão que talvez (só talvez) eu também tenha feito enquanto assistia o filme.

Ainda nesta questão de classe, uma das cenas mais marcantes do filme trata-se do piquenique em Box Hill. Emma é insensível com a Srta. Bates (Miranda Hart), uma mulher de poucas posses que vive da caridade das pessoas, e nesta cena conseguimos ver com muita clareza as distinções de classe. Emma, ficando solteira, ainda é respeitável por ser rica. A Srta. Bates, não. E é no silêncio dessa cena que vemos os olhares mudarem, e Miranda Hart nos entrega uma atuação lindíssima num momento muito vulnerável de sua personagem. É muito comum em Jane Austen que as heroínas precisem passar por momentos de reavaliação de seus princípios ou mesmo de mudanças de olhar – e esta é a cena da virada para Emma Woodhouse.

Virginia Woolf nos fala em seu livro Um Teto todo Seu sobre como as nuances dos relacionamentos entre mulheres praticamente não foram narradas até o advento de Jane Austen. Nesse sentido, Emma. incorpora de forma abundante e central as relações da protagonista com outras mulheres: Emma está sempre rodeada por elas.

Destas, talvez uma das que eu considere mais curiosa, é a rivalidade com Jane Fairfax (Amber Anderson). Aparentemente sem motivos para o início dessa rivalidade, Emma não entende porque o fato de terem a mesma idade implica um apreço mútuo. Adicione-se a isso o fato de a Srta. Bates sempre trazer notícias da prendada e bem-sucedida – porém pobre – sobrinha, e Emma retorce-se com um ciúme que conseguimos ver retratado. Deve-se comentar que não é, todavia, uma competição muito justa: Emma é, como já dissemos, bela, inteligente e rica, enquanto a Jane Fairfax é uma mulher prendada porque precisa ser, para que possa se estabelecer como governanta ou conseguir um bom casamento para seu próprio sustento. Emma pode escolher não se casar, se quiser, para Jane Fairfax, o trabalho é uma necessidade urgente.

A relação de Emma com a Sra. Weston recoloca o quanto a ausência da Sra. Woodhouse (sua mãe) é sentida. Emma é criada de forma a reinar em seu lar por um pai muito gentil, mas é na Sra. Weston/Srta. Taylor que ela enxerga o afeto materno do qual sente tanta falta. Aqui podemos, inclusive, pontuar a problemática de que sobre este afeto também há uma relação de poder – até seu casamento, a Srta. Taylor ainda é uma pessoa contratada pelos Woodhouse, apesar de ser considerada uma “pessoa da família”. O afeto, em si, existe e é forte, mas não é à toa que a governanta manifeste o desejo de ter uma casa e uma família para si.

Quando a Sra. Weston deixa o lar dos Woodhouse, Emma logo traz Harriet Smith para o posto de sua companhia feminina. E, com Harriet, vemos Emma, agora, assumir o papel de instrutora, e não de instruída, como era com a Srta. Taylor. Oferecendo toda a bajulação e o afeto que Emma procurava, Harriet ocupa esse novo lugar sem, no início, nos mostrar muito a ser acrescentado. Aqui, porém, fico feliz em dizer que foi um dos pontos em que o filme mais me surpreendeu positivamente: herdando alguns elementos que se assemelham às cenas privadas das Srtas. Bennet em Orgulho e Preconceito (Pride & Prejudice, 2005), a relação de Emma e Harriet se desenvolve, e é conduzida com um olhar gentil sobre duas garotas jovens que erram, acertam, resolvem seus conflitos e, principalmente, carregam muito afeto uma pela outra. Neste filme, é feita justiça à muitas vezes apagada personagem de Harriet Smith, que é um do principais pivôs para a mudança de perspectiva de Emma – inclusive quebrando algumas afirmações categóricas sobre classe que ela manifesta tão fortemente no início do filme.

Nesta adaptação de nos trazer suspiros e risadas, revela-se uma preocupação significativa de trazer Jane Austen para o espectador do século XXI. A delicadeza do filme se preserva, bem como a estrutura narrativa em suas sequências, mas esses elementos são apresentados de uma forma um pouco mais ousada e mais próxima do que se espera de um filme de romance contemporâneo. Emma. nos traz Jane Austen ainda viva em sua arte, ainda atual e ainda arrebatadora.

E que me lembra, constantemente, de, por favor, colocar um biombo aqui do lado para barrar esse vento frio.


Ana Clara Sá

Ana Clara é astrônoma, escritora, colecionadora de hobbies aleatórios e mais apaixonada por literatura e por cuscuz do que gostaria de admitir. Cofundou e edita a página de divulgação científica e cultura pop Cauda do Cometa e é colaboradora da página Valkirias. Nas horas vagas, pode ser encontrada tomando mais um cafezinho ou reassistindo Orgulho e Preconceito (2005).