Assim como na natureza, o início da vida adulta pode ser muito cruel. Não podemos culpar moralmente um leão por comer um filhote de cervo, ou imaginar que os vermes que um dia se alimentaram do leão estavam a planejar uma vingança contra o próprio. Contudo, ainda assim, a dor da vítima é inevitável no processo. Parece uma estranha analogia até agora? Então imagine seus primeiros passos rumo ao seu destino, a busca pelo seu lugar no mundo, sua primeira casa. Quando realmente você se sentiu um adulto pronto para o mundo? Ou será que você se sentiu empurrado a força do ‘ninho’ para enfrentar a vida (sabendo ou não como voar)
Esse e mais alguns dilemas são apresentados em Vivarium (2019), o segundo filme do diretor Lorcan Finnegan, onde acompanhamos a perspectiva íntima de um jovem casal, Tom (Jesse Eisenberg) & Gemma (Imogen Poots) vivenciando, forçadamente, alguns ciclos de vida humana, literalmente dentro de um pesadelo suburbano.
Logo no começo, o filme lança seus créditos em um close extremo sobre um par de filhotes de pássaros em um ninho, até que um, de uma outra espécie (o Cuco) se introduz no ninho, usurpa o espaço dos filhotes originais, derrubando-os para fora da segurança do seu “lar” e passa a viver e ser alimentado pela “mãe” pássaro daquele ninho, até sua forma adulta. Por conhecer pouco sobre esse hábito, fiz uma breve pesquisa e encontrei um artigo científico na revista National Geografic, com o título “This Baby Bird Is a Mother’s Nightmare” (Esse filhote de pássaro é o pesadelo das mães), lá pude entender mais sobre essa cruel, porém natural, atividade dessa ave e como isso se liga ao enredo posteriormente. Se repararmos bem, é nesse exato momento em que aparece o nome da atriz Imogen Poots, exatamente sob a imagem da fêmea que alimenta o pássaro invasor, porém sigamos com esse pormenor.
As simbologias e ideias são concluídas pela nossa imaginação, ao ver que que o casal de protagonistas circundam toda aquela cena inicial, visto que Gemma e Tom, trabalham ali no entorno da situação inicial dos créditos de abertura. Ela como professora de classes infantis e ele como jardineiro freelance na escola. Trabalhos esses que não proporcionam grandes lucros, para quem deseja começar uma vida a dois em uma cidade.
E é nesse momento que eles se veem, em busca de um local, que parece ser uma corretora de imóveis a oferecer uma opção mais econômica, o conjunto habitacional YONDER (ALÉM, Traduzido do inglês), e são guiados pelo exótico personagem que usa um crachá com o nome Martin (Jonathan Aris), e que, até então, é uma agente ou corretor de imóveis do YONDER. A figura de Martin, causa uma sensação de não humanidade, algo robótico que beira a comédia e ao mesmo tempo ao bizarro. Assim, também são as casas do conjunto habitacional. O mesmo padrão, as mesmas cores, o céu, as nuvens e tudo mais tem uma estética de regularidade tão perfeita que confundem e embaralham a vista e a ideia de realidade.
Martin os leva até a casa número 9, apresenta os cômodos e chega a mostrar um quarto pintado de azul, para um futuro filho. Trazendo um certo incomodo da protagonista, que até indaga o agente sobre o fato, ao qual ele responde algo muito curioso, “A casa 9 não é para iniciantes, ela é para sempre”, durante a visita ao imóvel Martin desaparece, e é onde começam todas as problemáticas de Tom e Gemma.
Notoriamente vemos que o casal, é empurrado para um ‘ninho’, uma habitação que mais se assemelha com uma simulação do jogo The Sims, somado a um sabor distinto de Twilight Zone, onde o tempo e as transformações parecem ser vistoriadas e controladas como em um viveiro de pássaros, ou uma fazenda de formigas. Até mesmo o aparecimento de uma inesperada bebê no “ninho forçado” do casal, fazendo com que a experiência que já era absurda, beire a insanidade de Tom e Gemma.
Transportando a simbologia dos acontecimentos, para uma constatação mais próxima de uma noção de realidade tangível, temos dois jovens presos, vivendo em um subúrbio de casas todas iguais, sem uma interação real com outras pessoas, com um “filho” indesejado e a ver o desgaste que a rotina estressante causa em sua relação. Uma situação muito comum, nos dias atuais, onde a vida adulta, cobra de nós uma prova de sanidade todos os dias. Finnegan e a co-roteirista Garret Shanley, adicionam a isso uma suavidade sobrenatural e uma quase perfeição inquietante. Tudo enriquecido por uma maravilhosa corrente de estranheza. Esse ótimo trabalho feito pelo cineasta, transformando o risível do absurdo em medo e em momentos surpreendentes de crueldade, converte Vivarium numa mistura do encontro entre terrores cósmicos e íntimos, usando o aspecto da convivência de uma intruso que se torna ‘familiar’ como pavor existencial, onde todos estão presos em um ciclo sem controle por parte dos protagonistas.
Sobre as atuações, Aris (Martin, o agente) é imediatamente o destaque óbvio do filme com sua energia esquisita e seus tiques alarmantes de uma falta de humanidade, Tom (Eisenberg) é uma boa escolha, que oscila entre relacionável e improvável obsessivo, enquanto ele luta contra a ideia de se adaptar ao seu novo estilo de vida, desenvolvendo um estilo agressivo. Mas é Gemma (Poots), quem realmente brilha aqui, entregando uma maratona emocional, vertendo do amor para a angustia, da felicidade para o medo e desespero, da tristeza para a raiva e todas as pequenas micro-emoções entre elas. O ator infantil, que representa o inumano garoto, Senan Jennings, também merece ser destacado, por trazer um desempenho físico chocante e afinado.
É justo dizer que Vivarium é uma metáfora direta sobre a alma vazia e os efeitos corrosivos da ansiedade doméstica – o filme não é sutil, mas Finnegan e Shanley evitam o território do grotesco ou sangrento e, frequentemente, essa falta de sutileza é parte do que torna Vivarium eficaz. Fica o convite ao impressionante cenário dessa produção com performances incríveis, sinta-se convidado para o mistério imersivo e saia com um medo incapacitante de crianças e preocupações relevantes sobre a cruel indiferença do universo dentro de nossos lares. A partir daqui, aviso que estou abrindo a porteira das especulações e spoilers. E caso, você não tenha interesse eu sugiro e indico assistir o filme, tirar suas conclusões sobre a obra e voltar para contribuir nessa conversa. Tendo em mente que Vivarium oferece notas de uma comédia kafkaniana, horror psicológico e ficção científica. Aguardando os comentários.
SPOILERS
Aos que seguem aqui, vamos mergulhar nos detalhes. O medo se intensifica, através das bizarrices do absurdo, como por exemplo o fato do bebê ‘recebido’, no tempo de 98 dias (se atenha as contagens da marcação feita na parede a pedido do menino) ter a aparência de uma criança de 8 a 10 anos, que age de forma robótica, grita como um filhote faminto para ser alimentado e torna-se reflexo e repetição de tudo que lhe é entregue como interação com os “pais coagidos”. Tudo nos leva a crer que se trata de uma experiência controlada por algo não humano, devido as pistas deixadas pelo livro vermelho e pela imitação, feita para Gemma, sobre o que ele viu durante seu desaparecimento.
O labirinto das casas
Assim como os labirintos para ratos, feitos em experimentos de laboratório, Yonder é construído para privilegiar uma visão superior. As pessoas são alimentadas como animais de laboratório, sem contato com o experimentador. Desde o primeiro dia na habitação, Tom percebe que a comida não passa de uma ração, com formas diferentes, porém sem o sabor real das coisas. Outra hipótese é de que o isolamento, a rotina vazia e o estresse, fariam com que tudo perdesse a graça (pela falta de ânimo) inclusive os alimentos.
O Numero 9 e o Agente
Apesar de todas as tentativas de escapar, o casal sempre acaba de frente a casa número 9. E recordando a frase dita pelo agente Martin, durante a apresentação do local, “ A casa 9 não é para iniciantes”, claramente não é o lugar para Tom e Gemma, que desejam iniciar seu próprio ninho. A especulação sobre a escolha do número 9, pode ser apoiada na Cabala Judaica e pela teoria dos Pitagóricos, onde o 9 representa o final de um ciclo e começo de outro, e esse número recebe as “vibrações do planeta marte”. O que, por sua vez pode ser correlacionado com o nome do Agente no Crachá “Martin”, uma referência em inglês a “Martian” (Marciano, aquele que vem de Marte)
A criança – “Raise the boy and be released” / “Crie o garoto e seja libertado”
Criar um bebê, aparentemente humano, mas totalmente sobrenatural em sua biologia e comportamento. Que realmente está a vigiar todos os passos do casal, com o intuito talvez de reproduzir o comportamento humano, dando assim mais eficácia para a experiência. Aparentemente, a criação do garoto segue acima até próximo aos seis meses, ao calcular pela parede e as marcações feitas a lápis de seu crescimento. Quando ele chega a sua totalidade adulta. A libertação de Tom, só é declarada após ele não poder contribuir de forma alguma, devido a doença e fatal morte. Ao focar no livro vermelho, trazido na fase da “infância” pelo garoto, compreendemos através dos desenhos algo aterrador, o ciclo geral da experiência sempre vai buscar um “pai e uma mãe” para aquele hospedeiro. E que é possível uma comunicação de forma alienígena através de vibrações (como no jogo da imitação).
Os “Pais” e a Criança
Seguindo um viés mais psicossocial dessa relação, podemos tratar de diferentes ângulos as reações em algumas cenas. A decisão de um aborto, no momento em que Tom tranca o menino no carro, e a reação de Gemma em continuar, mesmo confusa com a criança na casa. O fato de saber que existe um ‘filho’ intruso, observador e carente de cuidados faz com que a relação entre o casal se torne cada vez mais distante. Tornado Tom em um homem mais violento e obcecado em cavar um caminho para fora da situação. Enquanto para Gemma, a situação de uma maternidade compulsória é combatida por ela, sempre que escuta a palavra “mãe”, poderia também representar uma depressão pós-parto, mesmo sem que a personagem tenha parido, mas a situação em si e os traumas não a deixavam se afeiçoar por completo ao menino. Após, atingir a vida adulta, o “filho”, reconhece o medo da “mãe” já exausta, pois agora cuida de dois (Tom, que se assemelha a um idoso no banho e o “ homem novo da casa”), ele já não se importa mais com o casal, deixando-os fora da habitação e não socorrendo quando implorado por ajuda, tal qual alguns animais, que sabem que esse é o curso natural da vida. Envelhecer e morrer
O reconhecimento de outras simulações
Quando Gemma ataca o “filho” e ele se mostra cada vez mais um alien, em sua perseguição ela reconhece outras simulações, nos dando espaço para a abstração de que todas as casas daquela simulação de subúrbio vivem experiências, e que essas relações apenas não são compartilhadas entre os vizinhos na realidade, dando a ideia de solidão urbana e isolamento.
O que é uma mãe?
“Uma pessoa que prepara seu filho para o mundo” , essa é a resposta do agente para Gemma, que chega sem forças ao final dessa experiência e se questiona, assim como nós em determinadas situações cotidianas, qual nosso papel nisso tudo que chamamos de vida. Claramente, esse não é o papel que Gemma escolheu pra si, mas mesmo assim lhe foi imposto. A luta contra essa maternidade forçada, faz Gemma em diferentes momentos do filme variar entre ações generosas e preocupadas com o bem estar do garoto, e temer e odiar a presença dele. Na cena das nuvens, ela fala “Você é um mistério que eu vou descobrir”, o Outro sempre é um mistério a ser desvendado, um filho sempre é uma presença extra e misteriosa, que vivencia nossas alegrias e frustrações, construindo assim um novo ser para dar continuidade ao ciclo da vida, ou em Vivarium , ao ciclo da experiência.
Pisciana, web-jornalista, filósofa, social media, editora, aspirante à mochileira, dramaturga, maquiadora de efeitos especiais e viciada em fazer monografias. Sabe fazer malabares com objetos, mas joga bem melhor com as palavras. Detesta vestir roupa, filmes redublados e não pode comer abacaxi, mas adoraria.