AVISO – Esse artigo contém severos spoilers.
A era da representatividade é necessária, importante, está entre nós e, com a benção de Cher, chegou pra ficar! Conservadores, corram para as montanhas!
Eu tô muito nessa vibe desde que tive a oportunidade de pôr os olhos em Kipo e os Animonstros (Kipo and The Age Of Wonderbeasts, 2020 -), animação que a Netflix lançou no último 14 de janeiro e que nos entrega diversidade da maneira mais natural e empática possível! O roteiro e a produção são assinados por Bill Wolkof e Radford Sechrist que possui seu nome envolvido em projetos como Megamente (Megamind, 2010), Kong Fu Panda 2 (Kong Fu Panda 2, 2011) e Como Treinar O Seu Dragão (How To Train Your Dragon 2, 2014), e que se baseou nos quadrinhos originais que ele mesmo escreveu para internet em 2015. A produção é feita em parceria com a DreamWorks e a animação ficou por conta do estúdio sul-coreano Mir. O design de personagens, veja só, ficou a cargo do brasileiro Caio Martins.
Sendo bem sucinto, Kipo e os Animonstros conta a história de Kipo Oak, uma garota que vive em um futuro pós apocalíptico 200 anos à frente de nosso tempo em que a superfície da Terra é habitada por animais mutantes sencientes e os seres humanos vivem no subterrâneo em comunidades que eles chamam de “tocas”. Depois de ter sua cidade atacada por um animonstro gigante, Kipo fica presa na superfície e começa sua jornada em busca de reencontrar seu povo e, principalmente, seu pai. Em seu percurso, a garota conhece Lobo, uma menina muito marrenta, a dupla formada por Benson e Dave (o primeiro sendo um humano e o segundo uma espécie de inseto que fala e que passa rapidamente pelas fases da vida, trocando de pele quando menos se espera, ficando cada vez mais velho até que volta a ser um bebê novamente) e, por último, a uma porquinha super espirituosa, que consegue segurar um machado voador com os dentes, chamada Mandu. Acredite: você vai se apaixonar por cada um deles.
A protagonista ultrapassa o limite do carisma! É engraçada, inteligente e corajosa. Possui o espírito da curiosidade e está disposta a enfrentar o que quer que seja para reencontrar sua família, mas não se importa de parar no caminho para ajudar gatos falantes que perderam seu líder, fazer amizade com cobras de gangue, reconciliar lobos, acariciar filhotes de coelho gigantes e até mesmo conseguir um presente de aniversário para sua nova melhor amiga. Isso tudo enquanto luta contra um mandril falante que quer escravizar os humanos.
Lobo é uma garota negra baixinha que aprendeu da pior maneira que não se pode confiar em ninguém. Ela foi adotada e criada com lobos pra depois descobrir que seu propósito era servir de presa para ser caçada pelas “crianças lobo”. Mas essa história permanece um mistério até quase o fim da temporada. Ela demora para admitir o quanto se apegou à Kipo durante a viagem. E é ela quem protagoniza as melhores cenas de luta e ação do desenho. Ela. É. Bem. Foda!
Benson é um sobrevivente. Apaixonado por música, não há tempo ruim para ele quando põe os fones de ouvido aperta o play em seu walkman. Vaga pela cidade junto com Dave e os dois cuidam um do outro. São os típicos “trambiqueiros”. Não foi apenas por ele, mas foi principalmente por uma fala dele que eu definitivamente me apeguei a essa série.
Benson é um garoto de treze anos que escuta, compreende e põe Kipo pra cima nos momentos em que ela se sente mais deslocada. Seu apoio desperta na protagonista uma pretensa paixão. Em um determinado episódio, Kipo se declara para Benson e tenta beijá-lo, numa situação de visível desconforto para o amigo. E ali, no alto de uma roda-gigante em um parque de diversões Benson diz a ela que não gosta dela do mesmo jeito porque ele é… gay. Uma cena que me levou às lágrimas. Não por ser triste – o que definitivamente não é.
Eu já passei por muitas animações. E por muitas, eu quero dizer MUITAS. Nem mesmo em Steve Universo (Steven Universe, 2013 -) que é uma das animações infanto-juvenis com maior carga de representatividade que se conhece, foi possível uma cena em que um garoto de treze anos se declarasse gay. E, convenhamos, o romance entre as gems poderia ser enxergado de várias maneiras, até porque elas não eram humanas e todas em seu planeta eram do sexo feminino (ou nós as víamos assim, uma vez que para elas mesmas não existia distinção de gênero, já que não havia o “masculino”). Foi uma solução ótima para o que se podia fazer na época. Mas hoje, depois que Rebecca Sugar abriu os caminhos com um dos projetos mais apaixonantes que já vimos, o público pôde estar preparado para receber uma cena como a de Benson, em Kipo. Não há disfarces, não há metáforas. Benson é um garoto de treze anos contando pra sua melhor amiga que é gay. Talvez, se lá longe, nos idos anos 90, o Gambit de treze anos tivesse um equivalente como esse nas animações que ele assistia, muito da sua vida poderia ter sido diferente.
Para além do outing do personagem, a reação da protagonista é ainda melhor. Ela encara com a naturalidade de alguém que está à frente uns 200 anos de evolução de nossa sociedade (não, péra…). Ela apenas entende o motivo de não ter sua paixão correspondida e a vida segue normalmente – ao menos para os parâmetros da animação. E essa é a verdadeira beleza de tudo: tratar a sexualidade de um garoto com a normalidade que ela deve ter. Isso sequer vira motivo para assunto, afinal, em mundo apocalíptico em que você está o tempo todo fugindo de facções de sapos criminosos e tendo que batalhar até por comida – e pra não ser devorado – qual a real relevância da sexualidade de alguém pra qualquer pessoa que não ela mesma? Mas também não se engane. Alguns episódios adiante Benson se apaixona por outro garoto. Abertamente, aliás.
Kipo é uma animação toda feita por personagens não brancos. É a primeira vez que vejo algo do tipo. Uma raridade só por esse motivo. Apesar do plot principal que move a aventura, é um desenho cheio de paralelos com a sociedade real, o convívio com as diferenças, a luta por sobrevivência, aceitação dos grupos e auto aceitação. Há metáforas para a chegada da puberdade e das mudanças corporais, representadas pela descoberta de Kipo ser uma espécie de mutante, meio humana, meio “muto” (como Lobo costuma chamar os animonstros).
A trilha sonora é um presente! As músicas fazem a animação se tornar emocionante, seja pra te fazer chorar ou pra aumentar a tenção nos momentos de fuga. Cada grupo encontrado durante a viagem pode representar bem um nicho social: gangsters, pessoas alienadas com o sistema que têm medo de se rebelar contra ele, a galera que vive de boa, fazendo dinheiro diante do momento frágil que o mundo se encontra… Enfim, uma pluralidade tamanha que seria difícil colocar tudo aqui nesse texto, mas que é perfeitamente demonstrada nos 10 episódios que compõem essa primeira temporada. Fazia tempo que eu não me sentia tão empolgado. Não vejo a hora que chegue a sequência!
Kipo E Os Animonstros é livre para todas as idades. O texto é belo e nada complexo. A animação é divertida, de fácil entendimento e ultra cativante! É uma história, acima de tudo, sobre amizade e a importância da família. Assista junto com suas crianças e, se puder, tente ler os quadrinhos. Eles também são lindos!
Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!