Quais são os elementos necessários para tornar um drama interativo verdadeiramente cativante? Em fevereiro de 2010 Heavy Rain estreou no mundo dos games como uma versão melhorada de uma proposta introduzida cinco anos antes em Fahrenheit (2005) – outro trabalho de David Cage -, que consistia em cinematizar a experiência de jogo através de um plot complexo e jogabilidade pouco convencional baseada quase completamente em quick time events. Fahrenheit, na época em que foi lançado, foi um jogo relativamente bem sucedido em vendas e críticas, especialmente considerando a concorrência que enfrentou – favoritos do público como God of War (2005), Guitar Hero (2005) e Shadow of the Colossus (2005) -, e seguindo os passos de seu antecessor, Heavy Rain veio a ser um dos jogos mais vendidos da geração do PS3.
Agora vamos falar do porque. Numa época em que a punição máxima para um desempenho de jogo abaixo da média é a morte in game, Heavy Rain surgiu com o conceito de consequências em longo prazo, que consiste basicamente em substituir a tela de game over por reverberações das ações dos personagens ao longo da história. Essas reverberações podem ser positivas ou negativas de acordo com o seu desempenho pessoal e escolhas que você faz no decorrer do jogo, e não estamos falando aqui de alterações binárias como as escolhas de carma que vemos em Mass Effect (2007) e Infamous (2009), ou de coisas irrelevantes pra história, como esquecer de regar uma planta e ela eventualmente morrer – ei, Life is Strange (2015), eu tô falando de você – mas de alterações como errar uma série de comandos e ter personagens principais morrendo no meio da história, que continua sem eles.
Heavy Rain não acaba antes do final, mesmo que personagens morram ou falhem seus objetivos, mas ao acumular falhas ao longo do jogo, você se distancia mais e mais de um final ideal, tendo até 18 versões possíveis para o final da história. Essa característica é um dos seus maiores atrativos, pois torna a experiência extremamente pessoal e imersiva, dando ao jogador a sensação de que suas escolhas fazem uma diferença real no desenvolvimento do enredo, e de que desviar a atenção do que está acontecendo na tela é extremamente indesejável: qualquer informação que você perder pode alterar drasticamente o rumo da narrativa.
O jogo traz ainda vários outros elementos para intensificar essa sensação de imersão, embora nem todos eles sejam bem sucedidos. Um deles é o som da chuva, que está presente em quase todos os momentos do jogo, e a partir de certo ponto da história, se torna quase um lembrete do que precisa ser feito e o que acontecerá se você falhar. Outro elemento bem menos interessante é a oscilação das opções de diálogo/ação, que fica mais errática de acordo com o nível de tensão da cena, dificultando de forma até desnecessária o processo de decisão.
O próprio enredo também é extremamente cativante, apesar de começar bem parado. Os personagens jogáveis trazem para a história traumas do passado, motivações pessoais singulares, perspectivas únicas das situações que são influenciadas por profissões, saúde, gênero e histórico pessoal, e no processo de concluir os objetivos do jogo, o jogador se conecta profundamente com cada um deles e passa a se importar com o resultado de suas ações. Os mistérios vão se acumulando até atingirem um ponto de tensão máxima, e então começam a se desvendar em uma sequência de eventos intensa e verdadeiramente envolvente e, no fim, o jogador fica com a satisfatória sensação de sobrevivência e realização.
Isso não quer dizer que o jogo não tenha seus defeitos, é claro. Dez anos e dois jogos do David Cage depois, é possível ver com muita clareza que, tanto a jogabilidade quando o valor de replay de Heavy Rain, ainda tinham um longo caminho de aprimoramento pela frente. Detroit: Become Human (2018), que espelha Heavy Rain em muitos aspectos, apresenta uma versão melhorada dos controles de movimentação e da interface de diálogo e prompts de ação, e a divisão dos capítulos em nodos que rastreiam decisões tomadas e resultados obtidos torna a perspectiva de um segundo playthrough bem menos angustiante que seus predecessores.
O jogo também tem suas falhas de roteiro, a maioria sendo consequência direta de ter tantas opções e escolhas a serem feitas: muitas vezes, o caminho escolhido te leva a uma cena desconectada do contexto ou aparentemente aleatória, porque alguma informação se perdeu dentro das outras opções. Acontece, e acho que esse é um problema inerente aos dramas interativos, e apesar de quebrar um pouco da imersão que o jogo se esforça tanto pra construir, não é o suficiente para minimizar a experiência de modo geral.
Apesar de seus defeitos, o sucesso de Heavy Rain é mais do que justificado, e ele sobrevive bem ao teste do tempo: revisitando o jogo nos dias atuais, é possível notar imediatamente que seu formato ousado de storytelling, sua ambientação detalhada e realista e as nuances emocionais usadas na construção dos personagens vem servindo de referência para jogos do mesmo gênero que vieram depois – e o passar dos anos não diminuiu o encanto nem a tensão que o jogador vivencia ao longo da história.
Unicórnia, escritora, wannabe de roteirista e fangirl profissional, se alimenta de livros, filmes, games, animes, seriados, fanfics e cupcakes. É ocasionalmente vista chorando enquanto assiste animes de esporte, assombrando livrarias e eventos geek pela cidade, contando histórias de terror em salas escuras ou falando com gatos na rua. Os gatos normalmente respondem.