Em certo momento, enquanto assistia For Sama (2019) em casa, minha mãe passou por trás de mim e ficou observando um pouco aquelas explosões e choros em que eu estava tão concentrado. Só fui perceber de fato a presença dela quando a ouvi me perguntando do que se tratava aquilo. Expliquei que era um documentário, gravado por uma jovem jornalista na Síria durante os primeiros anos em que o país esteve assolado por uma terrível guerra civil (que ainda está em andamento). O momento exato em que ela estava assistindo mostrava uma moça, grávida de nove meses, que havia sido atingida por uma bomba e estava cercada de médicos em uma sala completamente coberta de pó tentando realizar uma cesariana para que ao menos a criança pudesse ser salva. É uma cena extremamente apreensiva e que deixa muda qualquer pessoa com o mínimo de humanidade restando dentro de si. Minha mãe tinha os olhos cheios de lágrimas ao fim da cena, me pedindo pra que eu não mais assistisse ao filme.
Waad Al-Kateab inicia seu filme em 2016 narrando para sua filha ainda pequena, Sama, a quem o filme é dedicado logo em seu título, como foi parar cinco anos antes na cidade de Aleppo e como esteve este tempo todo no epicentro de um conflito armado que tomaria quase todos os aspectos de sua vida. Portando uma câmera sempre a mão, Waad é daquelas pessoas que registra tudo que for possível. Não imagino se sua intenção original era transformar seus registros em um filme, ou se se tratava apenas daquele impulso jornalístico de gravar tudo, seja pessoal ou acontecimentos externos. O que importa é que o resultado final daquelas imagens gravadas durante aqueles cinco anos é muito mais do que o registro de um conflito em um país Árabe, como vemos quase que diariamente nos noticiários, é uma longa jornada sobre as várias facetas do ser humano, desde as mais nobres às mais perversas, e é com a câmera na mão da diretora que nos colocamos, mesmo que no conforto inegável das nossas poltronas, na pele e na mente daquelas pessoas que vivem aquilo sua vida inteira.
Só com a narração de Waad não é possível ter uma dimensão do contexto político que é a causa daquela guerra, mas quem lembra das notícias dos jornais reconhece por cima a rebelião de populares e militantes na Síria na tentativa de derrubar o governo do ditador Bashar al-Assad. Mas o documentário não exige tanto do nosso conhecimento de política internacional para que acompanhemos a jornada de Waad e sua família, precisamos apenas ter algo que é inerente ao ser humano, mas que tem se tornado incrivelmente raro, compaixão. Com ela podemos entender um pouco do que aquelas pessoas em Aleppo (mas também em qualquer outra zona de guerra) passam em seu dia-a-dia. Elas sofrem, choram e passam pelas maiores angústias que jamais poderemos imaginar, mas também sorriem, contam histórias, brincam com seus filhos. No percurso dos anos em que grava seu filme a diretora/protagonista encontra o amor de sua vida, se casa com direito a festa e música, engravida e tem a felicidade de dar a notícia a seu marido, o médico voluntário Hamza Al-Khateab. Mas a Guerra é presente em todo e qualquer momento e, em sua narração, Waad se lamenta de trazer àquele mundo uma criança inocente, quase como se sentisse a culpa de dar a luz a uma criança. Sama.
For Sama é doloroso na medida em que nos joga numa realidade que, ao vermos filmes de ficção ou mesmo notícias em jornais, sequer imaginamos como realmente seja. É um recorte de uma vida… na verdade de várias vidas, da família de Waad, dos primeiros anos de Sama, dos amigos que os ajudaram, das crianças que pintam um ônibus incendiado por ter sido alvejado. Na guerra percebemos o ser humano em seu pior estado, mas são também seres humanos os que tentam sobreviver em meio àquele caos, são seres humanos os que sentem a dor de serem obrigados a abandonar seus lares, são seres humanos os que se voluntariam e arriscam suas próprias vidas pela de desconhecidos necessitados. A humanidade é muito complexa.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.