Quando, em 2005, o então Papa João Paulo II faleceu, eu ainda era um jovem ateu de 15 anos que não se importava minimamente com o acontecido. Negava qualquer ligação com o cristianismo, mesmo que tenha sido criado no seio de uma família católica ferrenha, e, como a maioria dos adolescentes, o mundo girava em torno do meu próprio umbigo. O novo Papa, eleito pelo tradicional conclave, era o super conservador alemão Joseph Ratzinger, que escolheu um nome que quinze outros papas anteriores usaram, Bento. Em 2012, quando o mesmo Bento XVI escolhia deixar o papado ainda em vida, em meio a um turbilhão de polêmicas e escândalos que iam de corrupção a acobertamento de casos de pedofilia, eu já tinha completado meus 22 anos e, sim, ainda havia um pouco do adolescente chato de outrora, mas com uma consciência politica infinitamente mais organizada e crítica. Sabia da grandiosidade do fato que estava presenciando e pensava sobre os fatores que o levaram a ocorrer, bem como sobre as consequências que traria. Os olhos ficaram ainda mais atentos quando começamos a conhecer melhor sobre o substituto de Ratzinger, o primeiro latino-americano a chegar ao cargo milenar, o argentino Jorge Bergoglio, que escolhera ser chamado por um nome que nunca antes havia sido usado por outro Bispo de Roma, um nome que deixaria claro sua personalidade, quase que completamente contrária a seu antecessor.
Logo o Papa Francisco ganhou a simpatia de muitos cristãos e a antipatia de mais outros, invertendo a posição dos crentes que apoiavam ou não Bento XVI. Isto porque Francisco se mostrou desde o início muito mais complacente e liberal do que Bento, em uma mudança de posição tão drástica quanto inesperada para a Igreja naquela época.
Mesmo que pensasse bastante na grandiosidade daquela transformação e em como isso afetaria o mundo inteiro a nível macro, nunca havia me passado pela cabeça os pormenores que um evento como aquela deve ter tido, o que aconteceu não só no interior dos belíssimos cômodos do Vaticano, mas também no interior das cabeças daqueles dois senhores, um que saia, outro que entrava em seu lugar, de uma das posições mais relevantes da história humana recente. Mas passou pela cabeça de Anthony McCarter, roteirista indicado ao Oscar por A Teoria de Tudo (The Theory of Everything, 2014) e O Destino de Uma Nação (Darkest Hour, 2017), que acabou escrevendo o livro “O Papa” e depois, baseado neste mesmo livro, o roteiro de Dois Papas (The Two Popes, 2019), lançado no fim de 2019 pela Netflix.
O filme, dirigido com esmero pelo brasileiro Fernando Meirelles, começa apresentando os fatos que mencionei de 2005, com a morte de João Paulo II, mas já começa a apresentação dos dois protagonistas no conclave que elegeria Ratzinger naquele ano. Aqui, mais importante do que a apresentação dos dois padres, figuras que já conhecemos (ou achamos que conhecemos) por serem públicas e reais, é a apresentação da relação entre Joseph e Jorge, e o quanto ambos tem posicionamentos diferentes em tantos aspectos quanto possível. Essa relação é a chave do filme e ao mesmo tempo a engrenagem que o faz funcionar, então nada mais acertado do que ir nos deixando curiosos desde o início por como ela se dá desde antes mesmo de os dois ocuparem a cadeira de São Pedro. Logo depois, saltamos sete anos no futuro, para um papado já defasado e bombardeado de Bento XVI, prestes a tomar a decisão mais difícil e importante de sua vida. Enquanto isso vemos um Bergoglio decidido a aposentar-se, após achar que já deu tudo que tinha que dar a sua igreja, mas também decidido a continuar fazendo o que fosse preciso para o povo que tanto ama.
Meirelles claramente sabe o que está fazendo e o que quer fazer, e opta por focar sua atenção no que realmente deve-se ter atenção no filme, sua força-motriz, incorporada nas interpretações de Jonathan Pryce e Anthony Hopkins. Os dois atores se agigantam de uma maneira inacreditável ao criarem seus próprios Jorge Bergoglio e Joseph Ratzinger respectivamente, e a precisão dos diálogos escritos por McCarter fazem uma combinação perfeita para um filme que sabe divertir e impressionar ao mesmo tempo. A naturalidade com que vemos cada um dos dois fazer funcionar as personalidades dos dois cardeais, e as mudanças de nuances e humores nos diálogos que estão constantemente travando, ao mesmo tempo que deixam perceptíveis o respeito, a curiosidade, e o interesse que um tem pelo outro, fazem de Dois Papas um filme gostosíssimo de acompanhar, independente de qual sua opinião sobre a Igreja ou sobre as pessoas que inspiraram os protagonistas.
E é colocando os dois na mesma altura que o filme ganha ainda mais potência. Cada vez que achamos que devemos escolher um dos lados do que poderia ser uma guerra, o filme consegue nos lembrar que aquilo não é um combate, por mais belicosos que alguns dos diálogos possam parecer ou mesmo ser. Não é à toa a escolha de nos aprofundarmos no passado conturbado do argentino enquanto a fama de Bento é apenas colocada nas falas de Hopkins, assim como não há nenhum detalhe, seja nos diálogos, seja no que vemos em tela, que seja gratuito no filme, tudo ali é pensado cuidadosamente para que a brincadeira de mostrar as nuances da própria Igreja Católica como instituição, nas pessoas dos dois papas, funcione.
E claro que nem só de diálogos se sustenta o filme, mesmo que estes sejam seus pontos altos, mas os respiros onde vemos o comportamento incomum de Francisco em contraste ao classicismo de Bento, que o reprime constantemente incomodado com a frugalidade do outro, são tão importantes quanto os diálogos mais aprofundados do filme. O que acaba colocando no mesmo patamar tanto os diálogos simples e bem humorados, quanto os momentos em que os dois conversam sobre questões dogmáticas da Igreja e seus próprios passados, colocando os dois constantemente nos papéis de confessores e ouvintes.
Dois Papas é um filme muito mais grandioso do que eu poderia esperar, uma ótima surpresa do ano passado em vários aspectos, necessário por sua atualidade e facilidade de texto, certeiro em evocar temas desagradáveis dentro de um cenário agradável. Eu poderia ouvir as conversas daqueles dois velhinhos por várias horas mais, por mais ficcionalizadas que elas sejam no filme, e talvez sejam ótimas exatamente por serem assim.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.