Para alguns pode ser estranho, mas a primeira vez que ouvi falar em Fred Rogers na minha vida foi quando o documentário Won’t You Be My Neighbor? (2018) começou a receber críticas positivas e minha infalível curiosidade me levou a procurá-lo para conferir do que se tratava o filme. E eis que, felizmente, aquela foi uma das minhas melhores surpresas daquele ano. Dirigido por Morgan Neville, que já havia se destacado por documentários como Best of Enemies (2015) e o vencedor do Oscar na categoria A Um Passo do Estrelato (Twenty Feet from Stardom, 2013), o filme me apresentava um homem inacreditável. Para quem, como eu àquela época, não reconhece o nome, Mr. Rogers, foi o apresentador, durante muitos anos, de um dos mais famosos programas de televisão infantil dos Estados Unidos (por isso não o conhecemos muito por aqui), o Mister Roger’s Neighborhood. Parece só mais um desses milhares que vemos por aí hoje em dia, mas eu garanto (e indico fortemente que vejam o documentário) que este homem era sobre-humano. É difícil explicar, já que minha única referência é o filme, mas Rogers tinha um dom de falar para crianças coisas que, não só elas, mas todas as pessoas do mundo deveriam ouvir. Lições que iam desde as atitudes mais inocentes até lidar com a perda de um ente querido.
Naquele mesmo ano de 2018 fiquei sabendo de uma série chamada Kidding (2018 -), criada por Dave Holstein, estrelada por Jim Carrey (!) e com direção de ninguém menos que Michel Gondry, de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004). A série fala sobre Jeff e faz uma clara referência a Fred Rogers, só que com uma pegada pessimista e reflexiva, tratando das questões emocionais do apresentador em sua angustiante vida pessoal e da sua “missão” em apresentar seu programa infantil. Não é exagero dizer que a série se tornou uma das minhas preferidas da vida com apenas uma temporada (a segunda estreia ainda em 2020).
Dito isto, posso afirmar que, mesmo não o conhecendo por muito tempo, a figura de Mr. Rogers me intrigou de uma forma especial, me fazendo refletir sobre a bondade e a maldade inerentes do ser humano, as formas de lidar com os sentimentos, as angústias, as expectativas, e – como meu filho acabara de completar 2 anos em 2018 – com questões relacionadas à infância.
Ao assistir o novo filme de Marielle Heller, Um Lindo Dia na Vizinhança (A Beautiful Day in the Neighborhood, 2019) acabei por expandir ainda mais minha admiração e minha incredulidade por aquele homem. Baseado no artigo “Can You Say… Hero” escrito por Tom Junod para a revista Esquire, o filme faz um tremendo acerto ao colocar os holofotes não no apresentador, mas no amargurado jornalista que recebe a incumbência de traçar seu perfil para a revista, Lloyd Vogel – esclarecendo o mistério das indicações de Tom Hanks como ator coadjuvante em vários prêmios incluindo o Oscar, e não como protagonista como o esperado. O roteiro, escrito pela dupla responsável pela série Transparent (2014 – 2017), Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue, brinca ao apresentar uma narrativa que se passa dentro de um dos episódios do programa infantil apresentado por Rogers, desde a apresentação de Lloyd, um homem cheio de problemas familiares no passado, especialmente com seu pai, e com um filho recém-nascido, até receber a missão que mudaria sua vida, entrevistar o famoso Fred Rogers, algo que divergia de forma gritante com seu trabalho usual, ligado a investigação criminal e reportagens policiais.
Interessante perceber como o filme traça um paralelo entre verdade e incredulidade para os dois personagens principais do filme, enquanto Lloy Vogel é uma dessas pessoas pessimistas e cansadas como estamos fartos de ver por aí em nossas vidas (quando não somos assim nós mesmos), Rogers é, confirmando o que já havia visto no documentário, um ser quase angelical, alguém que parece não se encaixar no mundo turbulento em que vivemos, e este contraste entre os dois é apresentado desde seus primeiros encontros, causando uma tremenda desconfiança por parte do jornalista, acostumado a tratar com mentiras e charlatanismo o tempo inteiro em seu ofício. No entanto com a incredulidade vem a curiosidade, e Vogel se vê cada vez mais imerso naquela figura, ainda mais quando as conversas com Rogers começam a afetar suas emoções e sua vida pessoal.
A direção de Heller tem a segurança de quem está acostumada a filmar vidas amarguradas e personalidades extravagantes, como em seu último e ótimo filme Poderia Me Perdoar? (Can You Ever Forgive Me?, 2018), e viaja bem entre os momentos mais sóbrios e pesados e a leveza das cenas comandadas por Fred. Hanks, inclusive, parece ter nascido para o papel, mostrando-se extremamente confortável em cada movimento, fala e expressão facial, e não poderia ter sido uma melhor escolha para interpretar a personagem, mas precisamos destacar também o excelente trabalho de Matthew Rhys como Lloyd Vogel, além do elenco de apoio que conta com Chris Cooper e Susan Kelechi Watson respectivamente como pai e esposa do jornalista.
Um Lindo Dia na Vizinhança é um filme lindo e tocante, que fala não apenas da figura icônica do apresentador, mas a utiliza para discutir de forma leve e com seriedade temáticas essenciais como paternidade, família, expectativa de futuro, morte e vida, assim como fazia Mr. Rogers em seu programa televisivo.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.