Poderia Me Perdoar? – É possível amar em Nova York

1991. Nova York. Lee Israel tem 51 anos, uma gata e uma carreira como escritora de biografias. Ela ganhou notoriedade nas décadas de 60, 70 e 80 publicando obras sobre mulheres que triunfaram em suas áreas, como as atrizes Katharine Hepburn e Tallulah Bankhead, ou a executiva dos cosméticos Estée Lauder. Agora, Lee está desempregada e não consegue publicar seus livros pois não há interesse por suas biografias, as personagens sobre as quais quer escrever ou seu nome em si. Em meio às suas pesquisas para um novo trabalho fracassado, sobre Fanny Brice, ela acaba encontrando três cartas a comediante para uma amiga escondidas em um livro na biblioteca pública. Depois de vender uma delas para uma negociadora de livros e raridades, Lee entende que quanto mais “interessante” o conteúdo das cartas, mais elas valem. Então, ela acrescenta um P.S. a uma outra carta e daí em diante passa a falsificar cartas inteiras de celebridades do passado e a vendê-las. Assim, Lee Israel de escritora, passa a falsificadora procurada pelo FBI.
Poderia Me Perdoar? (Can You Ever Forgive Me?, 2018) é baseado no livro homônimo escrito pela própria Lee Israel e foi adaptado para o cinema por Jeff Whitty e Nicole Hololcener. Dirigido por Marielle Heller, o longa difere da maioria dos filmes biográficos que estamos acostumados pois não temos uma visão ampla da vida da personagem histórica e sim um pedaço, um pequeno pedaço na verdade, de apenas dois anos da trajetória da escritora. Claro, estamos falando de uma adaptação, é provável que o livro também se detenha apenas aos anos em que Israel foi falsificadora. Ainda assim, é interessante ver esse tipo de recorte, pois na maior parte dos filmes do tipo que vi até hoje, por causa dessa necessidade de abraçar toda – ou boa parte – da vida do/a protagonista, vários dos fatos que estão ali compondo a história são somente fatos, não influem na curva dramática ou no crescimento da personagem de forma direta. Aqui, cada fato que sabemos sobre Lee Israel – os presentes e os passados que escapam em conversas – compõem a trajetória dela no filme, na pequena história que ela escolheu contar.
Assistir a Poderia Me Perdoar? me parece agora como ler uma das cartas que a autora vendia. Os/as colecionadores/as e negociadores de raridades se interessam por aqueles documentos pois eles dão acesso a um lampejo da intimidade de autores e autoras renomados/as. Aquelas cartas são palavras não publicadas, palavras não escolhidas. Sem edição. O filme é um pouco dessa intimidade. Essa é uma das Lee Israel possíveis e é uma muito próxima de nós. Uma que está se sentindo fracassada com a própria carreira, tem dificuldades em escrever, não consegue pagar as contas ou comprar remédios para a gata. Uma mulher que quase não se relaciona, que tem uma ex que não consegue superar e nenhum amigo até esse momento. Se ela não tivesse 51 anos, para mim, o filme poderia ser classificado como um Mumblecore.
O roteiro se centra no crescimento dessa personagem e dosa perfeitamente os problemas concretos (o desemprego, a falta de dinheiro) com os problemas internos (a dificuldade em se mostrar frágil, a frustração com a carreira) da protagonista. Esse é um dos aspectos mais interessantes do filme para mim. Como na vida real, as coisas só vão acontecendo ao mesmo tempo e você tem que dar um jeito de lidar. Para quem estuda e escreve roteiros para cinema, sabe que esse casamento perfeito entre as duas jornadas da personagem é o ideal, mas sabe também que é muito difícil de alcançar. Das indicações desse ano para o Oscar, a de melhor roteiro adaptado para Poderia Me Perdoar? com certeza é uma das que considero merecidíssimas.
Melissa McCarthy e Richard E. Grant também foram indicados ao Oscar por esse filme, respectivamente para as categorias de Melhor atriz e Melhor ator coadjuvante. De fato, as atuações dos dois levam o filme a um outro nível. E já que estamos falando dos dois, é importante frisar a relação de seus personagens na história. Como já foi citado, Lee Israel tem grandes dificuldades em se relacionar com as pessoas num geral e o filme escolhe a amizade que nasce entre os dois para desenvolver isso. É interessante que o relacionamento mais bem sucedido do longa não é um romance. Além de não ser um romance, é uma amizade bem distante do ideal criado pela nossa sociedade: os dois são auto-centrados, rabugentos, viciados em alguma droga e tomam atitudes que podem magoar o outro sem remorso. Ainda assim, conseguem cuidar um do outro e no fim isso é o que importa.
Marielle Heller não faz escolhas extravagantes de direção, mas, para mim, é o que o filme precisa. Apesar de se passar no início dos anos 90, nada é colorido. Ela consegue criar um clima de cidade cinza e fria onde tudo é difícil para o corpo de Lee Israel. Seria um clichê quando se representa Nova York? Sim. Mas, novamente, é o que o filme pede. Aquela era a cidade que Lee habitava e via. Heller se concentra mais na performance de seu elenco e nas relações das personagens. Em meio à alteridade dessa cidade, é possível que uma escritora lésbica e um escritor gay ignorados pela sociedade (literária) encontrem alento um no outro. É entendível que Lee seja covarde o suficiente para se esconder atrás das celebridades sobre as quais escreve para continuar escrevendo. É completamente compreensível a dificuldade em ser frágil perante outra pessoa quando a cidade te esmaga.