No último mês estreou a primeira temporada de Pose (2018 -) na Netflix Brasil, com seus oito episódios, e em celebração trazemos um texto referente a segunda temporada da série.
Em sua segunda temporada, a série original do FX continua a contar a história sobre a cultura dos bailes de Nova Iorque na década de oitenta e noventa. Acompanhando as vidas da Casa de Evangelista, liderada por Blanca (M.J. Rodriguez) e suas vivências na vida na cidade. A personagem Blanca, coroada como Mãe do Ano no Season Finale da temporada anterior, continua fazendo de tudo para incentivar os seus filhos a seguirem os seus sonhos, mas ela também se coloca numa posição onde é forçada a seguir seu sonho independente da sua doença abrindo seu próprio salão.
Essa temporada é bem mais marcada pelo preconceito vivido pela classe LGBTQ naquela época, especialmente as pessoas negras e latinas, e pela epidemia da AID’s. São temas muito pesados, já vivenciados na temporada anterior, mas bem mais explorados durante esta nova. A temporada também se permite explorar mais o bom e o ruim dentro de seus personagens, dando-lhes novas situações e não permitindo uma sensação de estagnação quando se trata de seus arcos.
Ao longo da temporada podemos ver Angel (Indya Moore, não binárie) lutando pela sua carreira de modelo e também tendo um novo romance, muito diferente e bem mais saudável do de sua primeira temporada. Citando o caso, é um ponto muito positivo a segunda temporada ter se livrado de todo o elenco branco (e cis) da primeira. A personagem Angel pode então ser ela mesma capaz de cuidar de si, uma função a qual buscava em alguém no primeiro ano série. Mesmo a personagem cometendo erros ao longo desse caminho, se torna uma verdadeira história de inspiração ver essa mulher transexual negra ir lá e abrir as portas para si mesma e talvez até para outras como ela.
Os episódios desta temporada passam uma sensação mais fechada de arcos próprios e histórias concluídas, com uma aproximação mais pesada e realista aos temas. Mesmo tendo episódios bem pesados, a série ainda consegue manter o glamour das passarelas e dos bailes. A luta dessas pessoas cuja sociedade cis-hétero e branca nega minimamente um espaço.
Uma das melhores coisas desta temporada foi o desenvolvimento do arco de Pray Tell (papel que rendeu o Emmy à Billy Porter), tendo a sorologia positiva e passando por todo um processo de aceitação da sua condição. Esse personagem ganhou muito mais destaque e inclusive um episódio com diversos números musicais (lembrando o fato de Ryan Murphy, criador de Glee, é um dos produtores executivos e criadores da série). Além de tudo, a série teve na sua segunda temporada o que veio a ser a primeira cena de sexo de Billy Porter com outro homem. Uma cena é coberta de sensibilidade e cuidado.
A luta contra a AID’s, assim como outras lutas travadas como uma comunidade, toma centro nesta temporada. Em seu primeiro episódio a série recria um dos protestos do Act Up, na Catedral de São Patrick, em Nova Iorque. Um dos melhores aspectos da série é exatamente a união dessa comunidade quando se trata de lutar por seus direitos e defender os seus, pois durante a noite, nos bailes, podem existir rivalidades, piadas, competição por troféus, mas quando é necessário ‘ninguém soltar a mão de ninguém’, eles estão lá uns pelos outros. Hoje em dia muitos ignoram a importância de protestos, de distribuição de panfletos, da militância, para a conquista dos poucos direitos da comunidade LGBTQ e a série aborda muito sobre isso.
Não apenas sobre isso, mas sobre os diferentes discursos acerca de privilégios dados a uns por não serem negros, ou trans, ou afeminados, mesmo dentro do mundo LGBTQ. Essas reflexões são algo de extrema importância até na atualidade, quando se trata de discursos sobre opressão, pois, inclusive dentro da própria comunidade, há uma grande maioria se recusando a reconhecer as divisas entre cada uma das letras e os privilégios carregados pelas mesmas. Mais do que isso, ainda existem diversas pessoas se negando responsabilidades de assumirem seus próprios preconceitos por serem LGBTQ.
Numa sociedade onde pessoas trans são mortas e agredidas regularmente, um dos episódios mais dolorosos (mas reais) de se ver foi o quarto. Termos todo esse elenco lidando com a perda de uma das suas, passando por seus diferentes processos de luto, é algo realmente poderoso. É algo importante ter todo esse trabalho sendo realizado do ponto de vista das vivências de todo esse elenco e equipe, recheado de pessoas trans. A perfeita atuação entregue dentro desse episódio por todas as estrelas mas em particular Angelica Ross (a feroz Candy Ferocity) e Hailee Sahaar (Lulu Ferocity). As duas estabelecem um laço tão tridimensional para suas personagens, como irmãs desde a sua época sob o teto da Casa de Abundance, e esse episódio concretiza de uma forma bem executada todo esse relacionamento entre elas que não é uma coisa ou outra, mas sim várias coisas ao mesmo tempo. Como uma família.
Nesta temporada a família não cresce apenas como uma casa, embora os personagens dentro da Casa de Evangelista ainda sejam em si uma família, mas através dos laços já vivenciados por estes personagens. Mesmo com todos os problemas pessoais pelos quais os personagens passam, não deixam de ser uma família criada por laços afetivos e não sanguíneos. Elektra (Dominique Jackson) continua sendo uma das personagens mais icônicas e divertidas de se assistir, em quase todas as suas cenas roubando o fôlego com suas falas marcantes e expressões faciais inesquecíveis. Há várias direções para onde a personagem é levada nessa temporada, como mãe, como mulher transexual, como trabalhadora, e embora tais caminhos muitas vezes sejam diferentes a personagem de Elektra não deixa de ser uma figura extremamente marcante para toda a série.
Em meio a um governo Trump, Pose nos trás a personagem de Patti LuPone, Frederica Norman, como uma dona de imóveis burguesa, racista, homofóbica e transfóbica. A disputa dela com Blanca pelo seu espaço cruza toda a temporada, de formas surpreendentes até. Uma de suas mais icônicas falas se trata dela falando sobre uma mulher não poder realizar seus sonhos, mesmo uma mulher rica como ela, e como ela se arrepende de ter destruído os sonhos de outra mulher para alcançar o seu próprio. Mesmo para uma antagonista, cujo o enredo da temporada nem sequer tenta nos fazer conhecer ou ter qualquer empatia, Frederica ainda passa por um arco de crescimento e desenvolvimento e de certa forma melhora em certos pontos. Isso nos trás de volta a forma como os personagens não são apenas uma coisa ou outra na série, mas sim personagens multifacetados com seus atributos e suas falhas.
Quando se trata de ser uma série se passando no passado, bom lembrar duas importantes referências: o documentário dirigido por Jennie Livingston, Paris is Burning (1990) e a música de Madonna Vogue. Ambos são partes importantes da segunda temporada da série. Na verdade o filme de Livingston tem estado presente na série desde sua primeira temporada, através dos visuais e da construção de alguns dos personagens. Na segunda temporada a diretora do filme também é responsável por dirigir um dos episódios, exatamente um episódio carregado de referências sobre o movimento Act Up, já mencionado nesse texto. Já a música da Madonna é muito bem incorporada no enredo da temporada e faz parte da grande trajetória dos personagens Damon e Ricky, interpretados por Ryan Jamaal Swain e Dyllon Burnside respectivamente.
Pose continua em sua segunda temporada a ser transcendental, uma história cuidadosa sobre assuntos muito importantes e uma forma de produção bem preocupada com o responsabilidade de contar essa história sobre pessoas negras, latinas, transexuais, bissexuais, homossexuais. A temporada tem dez episódios, dois a mais do que a primeira, e não falha em desenvolver bem cada um de seus personagens e suas trajetórias. Um dos maiores pontos positivos de Pose é exatamente como a vida romântica ou sexual de suas personagens não é o foco, mesmo havendo a existência destes enredos. A trajetória de vida, de negócios dessas personagens é o que se torna central, mesmo com as eventuais presenças de romance na história.
Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.