RESENHA | Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca

Feliz Ano Novo é um livro de contos. Nas primeiras histórias, me peguei pensando “o que que eu tô fazendo lendo esse livro?”, um dos primeiros contos é bem desconexo ou pelo menos não consegui captar seu intuito. Mas, como nunca desisto na primeira vontade de um livro, persisti. Então, comecei a achar muito parecido com os escritos de Bukowski, com os cenários de bares e casas, personagens viciados e problemáticos, caos nas relações e todo aquele mundo que quem já leu Bukowski conhece. Avançando em alguns contos, comecei a me encantar com o autor; percebi que ele remete sim a Bukowski e que não, eu não gostei de todas as suas histórias, mas que ele conseguiu retratar muito bem a natureza humana em diversas situações, usando de uma visão pessimista, diria até algo Schopenhaueriana, mas com uma pitada de humor ácido e sutil. Não são histórias leves, que cairiam bem num dia de férias na praia – não. São histórias pesadas, muitas vezes com conversas desagradáveis, com atos desagradáveis e não tolerados pela moral e os bons costumes pregados pela sociedade. E, apesar de tudo isso, Rubem Fonseca consegue transformar seus escritos em uma leitura prazerosa, com conteúdo que possa ser extraído ao final de cada conto. É uma leitura nua e crua – nada mais absurdo do que o que todos nós somos.

Posso estar criando um viés para quem nunca leu o autor, mas me encantei com o conto “Intestino grosso”. É uma entrevista um pouco extensa de um jornalista com um autor de livro, na qual são debatidos inúmeros assuntos, como a pornografia tal como é chamada pela sociedade. O personagem apresenta uma visão muito mais realista e muito bem embasada do que seria realmente pornográfico.

“[A história de João e Maria] é uma história indecente, desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida. No entanto está impressa em todas ou quase todas as principais línguas do universo e é tradicionalmente transmitida de pais para filhos como uma história edificante. […] Essa é uma verdadeira história de sacanagem, no significado popular de sujeita que a palavra tem. E, por isso, pornográfica. Mas quando os defensores da decência acusam alguma coisa de pornográfica é porque ela descreve ou representa funções sexuais ou funções excretoras, com ou sem o uso de nomes vulgares comumente referidos como palavrões. O ser humano, alguém já disse, ainda é afetado por tudo aquilo que o relembra inequivocadamente de sua natureza animal. Também já disseram que o homem é o único animal cuja nudez ofende os que estão em sua companhia e o único que em seus atos naturais se esconde dos seus semelhantes.”

“A pornografia está ligada aos órgãos de excreção e de reprodução, à vida, às funções que caracterizam a resistência à morte – alimentação e amor, e seus exercícios e resultados: excremento, cópula, esperma, gravidez, parto, crescimento. Esta é a nossa velha amiga, a pornografia da vida. […] À medida que a cópula se torna mais mencionável […], vai sendo escondida uma coisa cada vez menos mencionável, que é a morte como um processo natural, resultante da decadência física, que é a morte pornográfica, a morte na cama, pela doença – e que se torna cada vez mais secreta, abjeta, objecionável, obscena. A outra morte – dos crimes, das catástrofes, dos conflitos, a morte violenta, esta faz parte da Fantasia Oferecida às Massas pela Televisão hoje, como as histórias de João e Maria antigamente.”

O autor chega a ser extremamente pessimista em alguns momentos, transformando o texto em “pornográfico”, razão pela qual seus livros foram censurados durante a Ditadura Militar no país. “Tem gente demais, ou vai ter gente demais daqui a pouco no mundo, criando uma excessiva dependência à tecnologia e uma necessidade de regimentalização próxima da organização do formigueiro. Vai chegar o dia em que a melhor herança que os pais podem deixar para os filhos será o próprio corpo, para os filhos comerem.”]

Em outro conto, chamado “O campeonato”, é narrado um campeonato de “conjunções carnais”, podendo representar uma metáfora aplicável a muitos contextos atuais, inclusive o da sexualidade. Ao final da história, o narrador chega a uma conclusão:

“O amor está acabando, porque o amor só existe por sermos animais de sangue quente. E hoje estamos finalmente representando o último poético circo da alegria de foder, que tenta opor as vibrações do corpo à ordem e ao progresso, aos coadjuvantes psicoquímicos e aos eletrodomésticos. A vocação do ser humano é ser humano. Não é ser organizado, nem fértil, nem ter o estômago cheio nas horas certas, nem ter como ideal o paraíso de uma placenta infinita.”.

Quem não adoraria viver numa placenta infinita? A metáfora perfeita para desejos todos atendidos imediatamente, com proteção incondicional e sem absolutamente nenhum ônus. Rubem Fonseca nos lembra que a realidade está bem distante disso e é sim – no sentido menos sexualizado e mais naturalista possível da palavra – pornográfica.