1964: O Brasil entre armas e livros – revisionismo indigesto e desonesto

1964: O Brasil entre armas e livros (2019)  é um documentário revisionista que busca impor uma narrativa histórica própria que deslegitime a vasta bibliografia sobre o tema, considerada como marxismo cultural por esta turma da nova direita. A galera do Brasil Paralelo.

Desde o nascedouro o longa busca uma linguagem direta para com seu público alvo. Uma abordagem absolutamente conservadora, faz sentido mediante o pensamento político de seus realizadores, Lucas Ferrugem e Felipe Valerim. O esquema talking head é seguido à risca. Foca no personagem, com fundos diversos, sem profundidade de campo. Aqui é o discurso que interessa. A credibilidade daqueles que o proferem. Vinculando isso à “seriedade histórica” da narrativa simples, “youtubica” – aliás antes de classifica-lo como cinema o chamo de vídeo, pois é isto que o próprio parece, um vídeo do youtube de 2 horas – que sirva de produto rápido de manipulação discursiva. Nada de novo. Tática conservadora, rasteira e eficaz, sem esquecer do caráter patriótico e de denúncia de sofrimento por perseguição ao pensamento contrário à esquerda, tudo isso bem vendido desde o começo.

Há algumas escolhas de que são objetivadas para o entendimento, mas suas repetições sub-reptícias nos mostram uma natureza de repetição gratuita com algumas intenções claras, algumas espertezas, outras são erros crassos. Alguns exemplos: 1. Narração off com a função de estabelecer um tom supostamente neutro para o espectador, onde começa por informar e vai se dedicando a servir com um opinioso crescente. 2. A imagem em scope (2.35.1) de nada serve. Não agrega. Escolha estética somente para padronizar a obra para exibição nos cinemas meio que querendo descolar do esquema vídeo de youtube que não conseguem soltar (ao invés da dialética interessante ficaram com a óbvia contradição). 3. Os mapas. Demérito encontrado nos mais variados documentários e séries vinculados à história neste período. Porém muitos deles com função específica de linguagem para além da mera ilustração (algo que se repete nas fontes). Aqui não passa disso.

Fontes diversas

Uso clássico de imagens e vídeos de arquivo para denotar a pesquisa histórica. Tentativa e cópia do esquema BBC, sem a mesma seriedade ou expertise. As fontes devem servir de salvaguarda e credibilidade para a obra e que sirva à linguagem, à narrativa e não somente apropriação imagética ilustrativa, sensacionalista sempre que possível – vide a marmota com a foto do Sebastião Salgado, que na verdade é de 1986, sem relação alguma com as ligas camponesas (mau-caratismo e pilantragem ou incompetência?). Sem falar da tentativa de precisão da modernidade diversificada. Carregando o teor modernoso, tem até o uso de uma conversa privada de Messenger de rede social como fonte. Muitos consideram isso mera patetice. Eu incluso.

Estabelecimento de temas

Existe aqui a intenção de representação de um mosaico que permita um entendimento mais invocado dos antecedentes no Brasil. Obviamente a citação do totalitarismo é usada como momentum preambular do discurso da ameaça comunista no Brasil pré-1964. Então por opção dos realizadores há a explanação e exploração da Guerra Fria, 2ª Guerra Mundial e até a Revolução Russa. Isto dentro da narrativa que venha a corroborar, sem pressa, com a ameaça comunista que pairava pelo planeta e como tal coisa era diversificada e rebuscada no que envolviam trocas de poder, relações culturais e espionagem propriamente dita. Uma obra que vende uma verdade histórica, “aquela que teus professores não te contam”, é seguida à risca sem a imparcialidade objetiva vendida, que é contradita várias vezes no longa.

O discurso de suposta imparcialidade cai por terra, o tempo todo, quando vemos um tratamento diferenciado e metido a espertinho no tocante às personalidades históricas. Onde figuras como Winston Churchill, conservador respeitado visto pelo filme como um salvacionista ímpar, aqui para um depósito de confiança no discurso. Tático. Na outra ponta vemos as figuras mais à esquerda tratadas ora como escrotos abertamente, a tríade soviética (Stálin, Lenin e Trotsky), ora como caricaturas. Jânio Quadros é um. No início ele é afirmado como populista da UDN, sem vínculo direto com esquerda ou direita, mas no momento que é dito seu contato com o comunismo vem o caráter de brincadeira e sátira. A música deixa isso claro, a estratégia musical de choque, tons graves pra denotar o caráter de gravidade, tensão e violência quando cita a Guerra Fria, e o tom jocoso quando trata personalidades que se quer avacalhar. Uma manipulação básica de linguagem pra influir sentimento de deslegitimidade no expectador. Além disso há certa confusão quanto a algumas figuras. É dito que a esquerda queria o Jango talvez como fantoche, depois que ele era ligado aos comunistas, que era íntimo de espiões tchecos, e ainda que a esquerda não o queria e nem o chamará de volta ao país. Nisso o filme não se decide. Jango é tratado na mais absoluta confusão. A intenção do filme é esta mesmo? Ou faz parte das contradições que ele comete?

Utilização de “especialistas” em História

Apresenta jornalistas e um historiador oficial. Rafael Nogueira. O tom dos discursos é similar nos questionamentos políticos que ensejam nas intenções do filme, porém o roteiro peca pela falta de congruência na narrativa que escolhe inventar. O filme passa uma hora afirmando o absurdo da ameaça comunista que não só rondava o país, mas conspirava dentro do mesmo, quando começa a falar explicitamente de 1964 afirma, pelas vozes de seus entrevistados, que não houve resistência alguma e que “a revolução foi um sucesso em 24 horas”, como afirma um deles. Ora aqui existe um problema de discurso grave. Alguns defensores da obra podem querer atestar a liberdade de espaço dos entrevistados. Eu vejo da seguinte forma, esta confusão existe pra afirmar que existia sim uma ameaça perigosa já dentro do país, porém as forças conservadoras, militares e civis, heroicas obtiveram rapidamente êxito contra seus inimigos. Não cola.

O filme afirma tecnicamente a existência de um golpe, de uma ditadura, a partir de 68. Pondo em pauta a atuação da linha dura no processo. Porém sem deixar de citar que o recrudescimento também se dera como reação às guerrilhas. O atentado no Rio Centro.

“Coisa da linha dura e não dá extrema esquerda”, segundo Lucas Berlanza. Anistia. Ampla, geral e irrestrita. Borracha para os dois lados. Estes temas são tratados formalmente diante do senso comum. Negar a ditadura é uma figuração de uma direita anacrônica e virulenta. O neoconservadorismo tem o anseio ultraliberal como pauta, e o autoritarismo histórico embaça. Por isso que o caminho escolhido é de certo cuidado, apontando problemas do exército na condução do país, incluindo seus exageros, e sem que se avacalhe os mesmos. De que adiantaria bater de frente com uma bibliografia vasta neste ponto, negando a ditadura? Além do que isto vende o caráter de respeito ao contraditório. O filme aqui é esperto.

A questão da documentação da Tchecoslováquia

Aqui o filme discorre inicialmente sobre a bibliografia farta que discute a influência americana na ditadura militar e que não falaria do lado soviético da situação (a não ser o Olavo de Carvalho, que é citado nisso por Mauro Abranches). Ou seja, o filme busca uma cobrança histórica em seu discurso, porém ele mesmo, em sua duração, não busca ser coerente com o modus operandi que defende. Questão de roteiro e narrativa. Mesmo assim aqui temos o melhor momento do filme. Mais sério e consistente. Mesmo com a estética de sempre presente. Porém mais funcional e coesa. Talvez pela curiosidade temática deste trecho, desconhecido no Brasil. Elemento do filme que invoca o suposto compromisso com a verdade. Funciona, ainda mais pela pilantragem. A montagem escolhe trecho da entrevista no qual Mauro Abranches, pesquisador sobre o material de espionagem tcheca, afirma que isso era somente material tcheco. Que de outros países citados nos documentos poder-se-iam provocar mais rebuliços sobre espionagem no Brasil.

Usufruto interpretativo histórico

Existem algumas incongruências históricas aqui usadas em benefício da narrativa. São escolhas de roteiro que, se não absolutamente tendenciosas, são de um esquecimento de material notável, claro, é proveniente de uma escolha política, narrativa e histórica, sempre repito. Citarei algumas. 1. Fala do poderio atômico soviético como um absurdo perigoso apontado para o mundo, sem pôr o contraditório à baila, o americano era tão perigoso quanto, porém tem-se o cuidado de citar a corrida armamentista. Ou seja, o trato inicial de historiador prometido já papocou aqui juntamente com a imparcialidade vendida. 2. Espionagem e propaganda soviética. Trata como se isso fosse quase que inventado pela URSS. KGB. Mas e o FBI e a CIA? 3. Cita rapidamente o envolvimento da inteligência americana. Em uma frase. Aqui como usufruto da argumentação da imparcialidade. 4. Fala do governo de Nikita Khrushchev como um mero continuismo stalinista, porém, ele era um crítico de Stalin, como no segundo Congresso dos PCUS em 1956, onde expunha o caráter totalitário e violento do Stalin. Como numa pior relação com os EUA, do que no período stalinista e mais do que com seu sucessor, Leonid Brejnev da ala mais radical que recrudesceu relações e foi partícipe da guerra do Vietnã, no poder a partir de sua saída em 1964. O Khrushchev só fora citado pela instalação de mísseis soviéticos em pontos estratégicos na crise dos mísseis em Cuba. E quando rolou mísseis americanos na Turquia e na Itália antes? 5. A intentona comunista tida pelo filme como tentativa de implementação do poder comuna em 1935. Mas esquece de discorrer sobre o total fracasso dela devido a falta de alinhamento político no Brasil de uma galera que viesse a aderir a causa. 6. Inclinação à esquerda com JK? Patético o argumento (de Alexandre Borges chefe do Instituto Liberal) do projeto ser de um esquerdista (Niemeyer era comunista convicto) como algo decisivo. “Tirar a capital de perto da população” como tática esquerdista. Mas é sabido o caráter faraônico de JK, desde o governo dele em Minas, e que uma capital mais distante do povo é algo tático independentemente de esquerda ou direita. Washington? Alguém? 7. A mentalidade desenvolvimentista é citada. Os gastos públicos. Engraçado que não falam da abertura à multinacionais no país. Um elemento absolutamente capitalista e expansionista, mas beleza. 8. Rafael Nogueira, o historiador oficial do filme, afirma o caráter não democrático da pressão, por ele citada, exercida por Jango nos trabalhadores para embaçar o congresso. O mesmo congresso que não deixara Jango governar diante da implantação do parlamentarismo. E a suposta pressão vinha pelas questões das reformas de base (citadas no filme) que o presidente queria encampar e que tinham aprovação de grande parte dos trabalhadores, ou seja, a não-democracia é citada de um lado. 9. Rafael Nogueira tira a importância da resistência do Brizola quase como se o político tivesse pouco apoio e logo morreria, e por medo não acionou a vera o terceiro exército que estava com ele. Não explicitam que Jango que não quis o derramamento de sangue. O “abandono” dele. 10. A guerrilha aparece. Retomada da temática das ligas camponesas. “Terrorismo Revolucionário”. Tortura e morte. Não entra no caráter inofensivo em termos práticos nacionais das movimentações de guerrilha de inspiração cubana e chinesa, com o Carlos Marighela como um dos principais artífices. Táticas que não levaram em consideração, clima, exército e território brasileiro. Araguaia fora um massacre e não um combate. 11. São postos em pé de igualdade na fita a atuação criminosa dos movimentos revolucionários ao estado brasileiro com toda sua infraestrutura e treinamento. O faz de maneira gaiata. Põe os mortos em números – 119 mortos pelas guerrilhas e 336 – 424 pelo estado. Age de forma condescendente com o estado. O que interessa aqui não é 1964, mas sim inscrever a esquerda como malefício absoluto. Os artifícios estão aqui exatamente pra isso. 12. Demonização de Gramsci e o Marxismo Cultural. Acusacionismo do genocídio das ditaduras da esquerda. O filme propõe o caminho da hegemonia cultural. Onde o Brasil “foi o país mais gramscista do mundo”, segundo Fravio Morgenstern. Ele imputa que termos de luta como machismo, racismo e homofobia são gramscistas. Sendo que os três movimentos de combates surgiram antes da popularização das ideias do Gramsci. A década de 60. 13. Filme propõe estudantes como massa de manobra da movimentação contracultural. Mas e massa brasileira manobrada na ditadura?  

Se você chegou até aqui, pacientemente, deve ter percebido a montagem absolutamente dura e grosseira do texto. Parágrafos absolutamente marcados, com uma relação de estarem falando do mesmo filme objetivando relações de linguagem, história, poder e narrativa. A minha intenção era exatamente mimetizar o que senti no filme. Mesmo com uma duração superior a duas horas a obra sofre de falta de unidade. Com uma montagem temática absolutamente episódica que consegue informar como um vídeo mas não consegue se vender como obra cinematográfica e tudo que isto implica. Faltou aqui mais gabarito de linguagem. Creio que o discurso de informar era mais importante, como já afirmei antes, tanto que a simplicidade é óbvia e visa o alcance maior possível, ainda mais num período onde conservadores empunham bandeiras de forma mais veemente. Precisam de informação fácil e bem embalada. O fato das partes, como cinema, não encaixarem como até poderiam, não interessa. Mas zunir e coaxar é absolutamente importante pra esta turma.

“É a mentira que de tão repetida, tornou-se História”. Fabrico de uma narrativa histórica que tem o usufruto de adaptações e liberdades históricas, com fatos embaçados, conspirações e contradições. Critica o discurso de defesa da ditadura do proletariado mas faz uma demagogia quando sua narrativa caminha na criação desta versão usando-se de vários artifícios farsescos. A direita ultraliberal conservadora. Nova moda. Costumes de direita, mantendo a conservação social, unidos com a prerrogativa do capital que não enseja exagero do estado. Uma gororoba unida contra a esquerda. Ao final mostram aqueles de esquerda que foram presos. Os tais heróis maiores. José Dirceu e Lula. Os mais proeminentes presos do PT. A ideia aqui é deslegitimar o pensamento da esquerda como um todo. Afirmar que a mesma é meramente oportunista e corrupta, substituindo o caráter de assassina de outrora. “Num tempo de engano universal, dizer a verdade é um ato revolucionário”, frase de George Orwell pra finalizar o longa, que bem que poderia tê-la seguido à risca dentro de si. A usa somente como simulacro de isenção de suas proposições políticas. A intenção da obra é clara. Vende história, jamais sem a política.