Homem-Aranha no Aranhaverso – O filme que o teioso (e seus fãs) sempre mereceram

Já mencionei aqui em outras oportunidades (especialmente no texto sobre Os Incríveis 2), e é de conhecimento geral, a importância que a criação de um super-herói como o Homem-Aranha, por Stan Lee e Steve Ditko lá na década de 1960, teve para uma ressignificação da representação destes seres superpoderosos nos quadrinhos e posteriormente em todas as outras mídias em que estes iriam dar as caras dali em diante. Um super-herói com problemas reais, que produzisse uma identificação quase instantânea em seus leitores e fãs era exatamente o que a sociedade estava ansiando, e se mostrou um acerto tão grande que estes heróis e este modelo continuam um sucesso até os dias de hoje, quando chegamos na já chamada de Era dos Filmes de Super-Heróis.

Este sucesso indiscutível levou o personagem a ter suas histórias adaptadas nas mais diversas formas de mídias e das formas mais variadas possíveis, passando pela TV, quando teve sua primeira aparição em uma série animada já no fim da década de 60 e em live action logo depois, na década seguinte, tendo nos anos seguintes e até hoje várias versões nestes dois formatos, chegando até mesmo a ter uma versão japonesa em tokusatsu. Nos jogos de video-game o Amigão da Vizinhança também deu as caras inúmeras vezes desde a década de 80, quando os consoles começaram a se popularizar, tanto em jogos próprios quanto aparecendo como coadjuvante em jogos de luta.

Já no cinema a primeira vez que um filme de maior destaque do personagem foi lançado foi com Homem-Aranha (Spider-Man, 2002) do Sam Reimi com Tobey Maguire no papel principal, sucedido de mais dois filmes, em 2004 e 2007, compondo uma trilogia de grande sucesso. Tornando-se, assim, junto de X-Men: O Filme (X-Men, 2000), os filmes que, na minha opinião, deram início ao boom de filmes de super-heróis que vivemos hoje. Após esta trilogia inicial, tivemos mais dois reboots do personagem, o primeiro com dois filmes, estrelados por Andrew Garfield que mais desagradou o público do que o contrário, e finalmente, a esperada introdução do herói no Universo Cinematográfico da Marvel, primeiro em uma pequena participação em Capitão América: Guerra Civil (Captain America: Civil War, 2016) e depois em seu ótimo filme solo, Homem-Aranha: De Volta ao Lar (Spider-Man: Homecoming, 2017), já com uma continuação prevista para estrear ainda este ano (sem contar sua excelente participação em Guerra Infinita).
Enquanto a Disney/Marvel se preocupava em encaixar o popular super-herói em seu bem sucedido universo a Sony, que já estava meio marcada pelos seus tropeços anteriores, mirava em alvos diferentes para continuar adaptando as histórias do teioso. Primeiro decidiram, sabe-se lá porque, apostar num filme solo de um dos vilões mais icônicos do herói, o que se mostrou economicamente acertado, vide o sucesso de bilheteria que o filme teve, mas por outro lado sua qualidade foi colocada em cheque pela grande maioria da crítica (inclusive nós). A segunda aposta não é menos ousada, um longa animado (o primeiro) que juntasse vários Homens-Aranha de diversos universos diferentes. Nasce assim, Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man: Into the Spider-Verse, 2018).
Este filme tinha tudo pra ser uma bagunça completa. Primeiro já falamos sobre as precedentes tentativas da Sony em reiniciar o personagem e não trazendo, na real, nada de novo, depois tínhamos o fato de que misturar vários universos e personagens, algo recorrente e, até certo ponto, exitoso nas histórias em quadrinhos de super-heróis, poderia, em um filme, se tornar muito confuso e dificultar a narrativa, ainda mais se tratando de uma animação voltada para o público de todas as idades. Mas qual não foi minha surpresa, mesmo tendo visto com certa desconfiança os trailers e vídeos de divulgação, quando assisti a um filme incrivelmente organizado tanto em sua narrativa, quanto visualmente falando!
“Aranhaverso” tem como protagonista Miles Morales, personagem já existente nos quadrinhos, jovem negro e latino, filho de um policial e de uma enfermeira, muito diferente do Peter Parker que nos acostumamos a acompanhar (seja qual for a versão em que o vimos). A apresentação de Miles, antes mesmo de se tornar o Aranha, já causa uma empatia instantânea e vários de seus problemas já são ali apresentados e compreendidos facilmente, especialmente a relação com os pais e com o tio. Logo em seguida todos os acontecimentos que envolvem desde sua versão da picada de aranha radioativa, passando por seus primeiros momentos como super-herói, até a aparição dos outros Homens-Aranha de outros universos, tudo é exposto de uma maneira leve, mas não rasa, de forma que conseguimos acompanhar uma história que poderia ser bastante complexa, mas que através da s ótimas construções de diálogos, nunca expositivos demais, e de uma montagem dinâmica se torna formidavelmente entendível.
O que deixa o filme leve o bastante para, mesmo com tantos personagens e subplots, termos tempo para ver sequências de ação de dar inveja a muito filme de super-herói em live action que temos sido obrigados a aguentar ultimamente. Os três diretores, Bob PersichettiPeter RamseyRodney Rothman conseguem manter o filme coeso a todo instante e o design de produção de Justin Thompson constrói uma Nova York riquíssima em detalhes, pincelada com inúmeros elementos de quadrinhos como onomatopeias e  recordatórios, nos fazendo lembrar a todo momento que é de lá que o personagem veio. Todas as referências são muito sutis e devidamente encaixadas na narrativa, nunca entregues gratuitamente, e nos fazem sentir a presença de uma influência forte das várias mídias em que o Aranha já esteve.
Os personagens são um show à parte, todas as versões do Aranha que aparecem, seja a Spider Gwen, seja o Homem-Aranha Noir, seja o cartunesco Porco-Aranha, funcionam sim, como uma brincadeira visual (e parabenizo aqui o designer de personagens), mas também têm todos uma função narrativa dentro do filme. Com maior destaque à versão loser de Peter B. Parker, provavelmente a melhor representação deste que eu já tive o prazer de ver. Mesmo os muito vilões que aparecem na trama, liderados pelo Rei do Crime, são muito bem encaixados de forma que todos ajam dentro da história por algum motivo específico (mesmo que a maioria sejam apenas capachos do Rei). E não posso deixar de mencionar o inacreditável elenco e trabalho de vozes da animação (assisti na versão original em inglês), com nomes como Mahershala Ali, Zoë Kravitz, Liev Schreiber, Jake Johnson, Hailee Steinfeld e ninguém menos que Nicolas Cage, só pra citar alguns.
Por último, e tão importante quanto todo o resto, preciso falar sobre a maravilhosa trilha sonora do filme, tanto a original, composta por Daniel Pemberton trazendo uma dinâmica tecnológica e de ação urgente para o filme unidas a uma batida que remete ao rap americano moderno,  quanto a trilha musical com canções de rap encaixadas perfeitamente no filme, às vezes diegeticamente, como a linda Sunflower de Post Malone e Swae Lee, ouvida nos fones de ouvido de Miles, às vezes embalando divertidas sequências de ação.
Considero Homem-Aranha no Aranhaverso, com folga,  o melhor longa do personagem já produzido (e um dos melhores filmes de super-herói dos últimos tempos), não só por me fazer experimentar novamente a alegria que sentia ao ler/assistir suas histórias quando criança e adolescente, mas também por conseguir tão bem estruturar uma narrativa complexa como esta de forma extremamente divertida e dinâmica, nos deixando com um desejo de que aquela história demorasse pelo menos o dobro do tempo pra acabar.