Black Mirror: Bandersnatch e o paradoxo do livre arbítrio

O ano de 2018 (RIP) foi extremamente político e politizado, trazendo à tona a responsabilidade que tiveram os brasileiros na escolha de seus próprios representantes. A possibilidade de pensar uma escolha livre, através do voto, feita pelo eleitorado, sobretudo quando emergiu o escândalo das Fake News, foi posta em cheque. Todo esse enredo – que parece tangenciar completamente o objetivo dessa postagem – serve para contextualizar que a distopia que envolve o episódio especial Black Mirror: Bandersnatch (2018) é mais palpável do que aparenta por tratar e debater exatamente o que o cenário da vida em sociedade já questiona desde a Antiguidade: qual a liberdade das nossas escolhas?

O filme é interativo. Durante a reprodução o espectador terá que definir, dentre as duas opções que aparecem na tela, qual desfecho terá a narrativa. Lembrando que, caso não seja escolhida nenhuma das alternativas, uma das opções, de forma aleatória, é selecionada – o que faz lembrar que não escolher, também é uma escolha.

A obra se desenrola na cidade de Londres, no ano de 1984, onde a personagem principal é Stefan Butler (Fionn Whitehead). Um garoto que mora com o pai e deseja produzir um jogo interativo de videogame inspirado no livro Bandersnatch. Stefan sofre com problemas psicológicos ligados à perda de sua mãe e por isso frequenta uma psicóloga para fazer o tratamento com o auxílio de medicamentos. Durante a produção do seu jogo de videogame, patrocinado por uma grande empresa, o seu estado psicológico piora e o desenrolar de seus ataques é controlado por quem assiste, o que vai determinar vários desfechos.

As escolhas iniciais proporcionadas na narrativa são pouco relevantes, dando ao público a possibilidade de escolher, por exemplo, qual cereal Stefan vai tomar, qual música ouvirá ou mesmo qual disco comprará. Até então, a percepção que tive era de que a participação seria superficial. Concepção essa que durou pouco já que, em dada parte do episódio, eu não só escolhia, mas era uma personagem na trama.

No auge de seu descontrole emocional e psíquico, Butler nota que está sendo controlado e que não tem domínio sobre suas escolhas. Ponto chave em que começa a questionar quem o comanda e a direcionar suas falas diretamente a quem assiste. Foi aí que me senti participante no filme – uma pena que não houve cachê.

É possível, dado o contexto atual, sentir completa empatia por Butler e até questionar se as escolhas que estamos fazendo estão sendo livres ou se estamos realmente sob o controle da personagem, já que certas escolhas feitas dentro do filme não são atendidas/executadas por ele. O questionamento que o filme levanta sobre o livre arbítrio e o uso das liberdades tem um impacto tal que é necessário digerir, com muita calma, o turbilhão de ideias que foram/vão emergindo.

O debate que tomou a internet acerca da interatividade do episódio perpassa os finais que ele pode ter e o desfecho de cada escolha, o que deixou em segundo plano uma discussão muito mais rica que até então vi pouco acontecer: o controle que as instituições exercem sobre os indivíduos e a pureza das nossas escolhas e ações.

Um dos grandes questionamentos acerca do livre arbítrio feito na ciência veio em 1983, com o psicólogo Benjamin Libet – note a proximidade temporal entre esse fato e o contexto do filme. O experimento feito por Libet envolvia a implantação de eletrodos na cabeça dos participantes e a escolha que tinham eles de mover um dedo, seja da mão direita ou da mão esquerda. O momento exato em que executavam o movimento era anotado e relatado pelos participantes. O resultado surpreendeu, pois antes do horário marcado pela efetiva execução de mexer o dedo foi possível notar impulsos cerebrais que definiam a ação a ser tomada. A conclusão foi de que nossas decisões são geradas no subconsciente e externadas frações de segundo depois. Como se já tivéssemos decidido antes de decidir.

Como se não bastasse esse “delay” no nosso cérebro que põe em cheque a autenticidade das nossas decisões, apresento Richard Thaler, ganhador do prêmio Nobel de economia em 2017. Ele desenvolveu a teoria dos Nudges que é, em termos gerais, um empurrãozinho dado pelo mercado para induzir os consumidores a uma “compra inteligente”. Posteriormente esse controle, menos invasivo e que mais parece um “aconselhamento do bem”, foi absorvido pelo Estado e usado em políticas públicas para direcionar os cidadãos a tomadas de atitudes mais inteligentes. Um exemplo bem claro de Nudge usado no Governo brasileiro é o aumento na carga tributária do cigarro e a imagem que estampa as embalagens do produto, o que o torna mais caro – e em consequência menos atrativo – além de lembrar a quem o consome sobre os malefícios de seu uso.

Além de o mercado exercer controle e o Estado fazer o mesmo, destaco aqui a influência da igreja e da religião, fator determinante também das eleições de 2018 no Brasil, visto que muitos eleitores seguiram a orientação de seus líderes religiosos na hora de escolher em quem votar. Ademais, os impactos que trouxe o Papa Francisco, sem filiação partidária e tido como cidadão mundial, no cenário internacional é nítido, podendo ser percebido na aproximação que conseguiu entre Cuba e EUA. Exemplos como esses mostram como é possível mudar/influenciar as escolhas e o pensamento das pessoas através de seus credos e cultos.

Para não tornar tudo isso uma aula chata de Ciências trago o último exemplo que o pensamento sobre uma liberdade legítima pode destruir: o Direito. Nessa área de estudo, o Direito Penal serve para resguardar os bens mais importantes da sociedade como a vida, o patrimônio e, pasmem, a liberdade dos indivíduos. Por isso, não deve o Estado encarcerar ninguém sem o Devido Processo Legal ou sem provas contundentes que determinem a efetiva culpa (ou dolo) que teve o indivíduo. Com base nisso pessoas são presas e cumprem penas por terem escolhido cometer crimes ou ficam livres por terem escolhido cumprir a Lei. A escolha e a liberdade de escolher é, aqui, entendida como completamente pura e sem vícios.

Baseando-se na fragilidade das nossas escolhas, dado o “delay cerebral”, e o impacto das Instituições Sociais na influência das nossas decisões resta saber a quem está servindo um sistema que se pauta numa liberdade que não temos e talvez nunca tivemos. Afinal, quem está jogando Bandersnatch conosco?

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Jamille Bernardes
Estudante de Direito, professora de redação, negra e feminista. Ama ficção-científica e é completamente viciada em jornais. Prefere água à qualquer outro tipo de bebida e não dispensa jamais uma pizza de calabresa da promoção.