Há mais de 100 anos atrás, em 1902, o ilusionista, cineasta e sonhador Georges Méliès lançava sua obra hoje mais conhecida e cultuada, intitulada Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune), que mostrava as aventuras de um grupo de cientistas que resolviam desbravar o desconhecido lunar. Apenas 67 anos depois, em 1969, a humanidade conseguiria, de fato, colocar um indivíduo de sua espécie no solo esburacado da lua, que se mostrou um pouco diferente da representação de Méliès, mas não menos extraordinário. Mas extraordinário mesmo, além do fato de estarmos pisando onde apenas sonhadores imaginavam poucos anos antes, é o contexto que cerca este fabuloso acontecimento, tanto o global, político e ideológico, quanto o pessoal, a própria vida das pessoas que estavam diretamente ligadas àquele sonho/missão.
Damien Chazelle, que já havia nos presenteado com Whiplash: Em Busca da Perfeição (Whiplash, 2014) e La La Land: Cantando Estações (La La Land, 2016), agora nos trás – inspirado no livro O Primeiro Homem: a vida de Neil Armstrong (First Man: The Life of Neil A. Armstron) de James R. Hansen, publicado em 2005 e mais recentemente no Brasil pela editora Intrínseca – um recorte da vida do homem que entraria para a História como o primeiro a colocar os pés no nosso satélite natural.
O Primeiro Homem (First Man, 2018), poderia ser só mais um dentre vários filmes que já abordaram o tema ou representaram o desbravamento humano ao espaço, seja retratando acontecimentos reais ou suposições futuras como os que mostram a exploração de Marte (e nem vou entrar aqui no âmbito da ficção-científica mais fantasiosa, que eu amo), e era exatamente o que eu estava esperando ao entrar na sessão para ver o filme. Sabia que provavelmente veria um bom filme, mas ao final das 2 horas e 21 minutos de filme ficou claro para mim que Chazelle e o roteirista Josh Singer (além de toda a equipe responsável por todos os setores do filme e que irei me deter mais a frente) se empenharam ao máximo para não nos entregar apenas mais um. E a força com que este filme me impactou é a prova de que eles conseguiram isso de forma excepcional.
Na sequência inicial do filme vemos Neil Armstrong (Ryan Gosling), ainda um jovem engenheiro aerospacial e piloto de testes, conduzindo uma aeronave que faz uma rota ascendente em direção aos limites da atmosfera terrestre em mais um dos vários testes que já devia ter feito até então. Em certo momento, quando deveria inverter a trajetória e se dirigir à superfície o veículo apresenta algum problema mecânico que impede Armstrong de fazê-lo, o que o faz continuar subindo e ultrapassar o limite de segurança, chegando à fronteira espacial propriamente dita, proporcionando uma visão belíssima do planeta Terra e do infinito, mas colocando sua vida em grave risco. Ler minha descrição da sequência aqui não chega nem próximo do sentimento que senti ao assistir aquilo. A câmera se coloca numa proximidade impressionante do rosto de Armstrong, nos colocando dentro da aeronave com ele, inclusive é pelo reflexo do capacete que temos sua visão da superfície terrestre, e as poucas vezes em que estamos no exterior da nave ficamos colados a sua lataria, causando uma sensação de imersão impressionante (lembrando que vi o filme em 2D, mas na melhor sala de cinema da minha cidade -IMAX – que é a forma que recomendo ver o filme). Muitas pessoas podem dizer que já tivemos um filme como Gravidade (Gravity, 2013) (que, lembremos, necessita do 3D para a imersão completa), mas dizer isso é simplificar demais um filme tão profundo como se mostra o de Chazelle.
Depois de nos deixar quase sem fôlego e em pé na cadeira após esta sequência inicial o filme nos joga de cara na vida pessoal de Armstrong, de sua esposa Janet (Claire Foy) e sua filhinha pequena Karen (Lucy Stafford). E logo somos aproximados ao protagonista de forma a entendermos sua forma de agir, quase sempre silencioso e um pouco recluso, principalmente quando dedicado ao trabalho, mas também emotivo e sensível no ambiente familiar, como quando canta para a filha enquanto acaricia seus cabelos. Mas nada mais efetivo para nos aproximar de um personagem do que o colocar frente a dor de uma perda, e o sentimento advindo disto, bem como a forma como reage, moverá Neil em vários momentos deste recorte de sua vida que o filme escolhe abordar. E nestas ocasiões mais pessoais o fotógrafo Linus Sandgren (que levou o Oscar por La La Land) se mostra tão efetivos quanto nas sequências espaciais de maior tensão, escolhendo um distanciamento um pouco maior, denotando um pouco deste auto isolamento do protagonista, mas também apostando em planos conjunto apaixonantes quando nos momentos de maior intimidade com Janet ou com os filhos, e a sutileza da alternância entre paletas mais frias e mais quentes, tanto nas cenas de espaço ou na NASA como nas familiares, que muitas vezes têm se tornado bregas em alguns filmes, aqui são colocadas nos momentos perfeitos, dando o tom que cada cena necessita evocar.
Assim, percebemos que o filme trata da humanidade de Neil Armstrong, de sua coragem, mas também de seus medos, de seus valores, mas também de suas falhas. No entanto esta é apenas uma das várias camadas de profundidade que o filme deixa evidente. Chegar à Lua foi uma das empreitadas mais ousadas dos seres humanos em toda sua História e o filme faz questão de realçar isso, muitas vezes apresentando as dificuldades como praticamente impossibilidades, tanto físicas, como quando na hora do lançamento de uma das missões de teste Gemini um técnico pede um canivete suíço para soltar algo que não deixava o cinto de um dos pilotos prender; como emocionais, quando têm que lidar com a perda de vários companheiros de trabalho. O roteiro é completamente eficiente em mostrar o perigo que aquelas pessoas estavam correndo, e nos faz temer mesmo sabendo que Armstrong sobreviveria à tarefa. Mas também nos faz sentir a responsabilidade do astronauta ao ser escolhido como capitão da missão que os levaria á Lua, e como isto afetou a relação com sua família, e mesmo que Armstrong seja claramente o protagonista do filme o talentoso elenco de apoio (especialmente Foy) não faz por menos e ajuda a compreendermos a mente de Neil naquele momento.
A sagaz edição de Tom Cross (indicado ao Oscar por La La Land e vencedor por Whiplash) também é um elemento fundamental para que esta história seja contada de forma tão efetiva, conseguindo ser incrivelmente competente em unir os momentos familiares e mais sensíveis aos momentos das missões e suas preparações, e ainda conseguir espaço para pincelar, mesmo que rapidamente, o impacto negativo que a corrida espacial gerou em parte da população americana à época, bem como alguns momentos onde os próprios astronautas e engenheiros agiam como defensores do programa da NASA frente a desconfianças de políticos e da população.
A trilha sonora merecia um texto inteiro dedicado somente a ela. O jovem Justin Hurwitz (outro que faz parte da longa lista de indicados e vencedores do Oscar por La La Land), já mostrou que conseguiu criar uma identidade própria em suas composições, e é interessante como se arrisca aqui a sair do lugar comum em filmes de exploração espacial levando a sensibilidade musical do filme a outros níveis, afinal não se trata apenas de uma aventura empolgante pelo espaço sideral ou uma surreal viagem espacial para salvar o planeta Terra de um asteroide, estamos falando de um acontecimento real, além do que seria necessário uma trilha que conversasse tanto com o âmbito espacial quanto com o pessoal de Armstron, o que Hurwitz consegue de forma sublime com composições que evocam uma delicadeza mesmo nos momentos mais apreensivos, fazendo um uso brilhante do silêncio espacial quando é preciso, mas também do silêncio do próprio Neil Armstrong, perdido em suas angustias e ansiedades.
O momento da chegada à superfície lunar é obviamente guardado para o último terço do filme, e é inacreditável que mesmo depois de nos impressionar de várias formas durante todo o filme até ali ainda seja possível subir um pouco mais o nível e nos deixar completamente boquiabertos com o nível de imersão e emoção que Chazelle conseguiu empregar à sequência (lembrando mais uma vez que não foi necessário 3D), fazendo uso de subjetivas onde nos colocamos dentro do capacete e do traje espacial e observamos pela primeira vez de perto aquela terra desconhecida, utilizando a sombra da superfície lunar ou o reflexo nos vidros dourados espelhados dos capacetes, e é curioso como a interpretação de Ryan Gosling na construção de seu Neil Armstrong foi tão certeira durante todo o filme que conseguimos imaginar sua expressão dentro do capacete, mesmo que não seja o que estamos realmente vendo.
O Primeiro Homem consegue ser ao mesmo tempo emocionante e impressionante em tantos sentidos que me atreveria a dizer que é mais fácil provar que Stanley Kubrick forjou a chegada do homem à lua do que encontrar uma escolha inadequada neste filme.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.