Nasce Uma Estrela – Longe do Raso

Pouco antes do final de Nasce uma Estrela (A Star Is Born, 2018), o irmão do protagonista, em tom melancólico, diz que todas as músicas não são nada além de 12 acordes em infinitas escalas. Os músicos, afinal, constroem canções diferentes para falar mais ou menos das mesmas coisas. A frase soa como um metacomentário: na quarta versão da franquia, a história ambienta os mesmos grandes temas (fama, derrocada, amor e alcoolismo) na cultura pop contemporânea, explorando a complicada indústria de construção de estrelas do nosso tempo.
A história permanece a mesma das versões de 1937, 1954 e 1976 (protagonizadas, respectivamente, por Janet Gaynor, Judy Garland e Barbra Streisand): uma jovem talentosa se une a um artista de ampla influência midiática e vai galgando os degraus do sucesso enquanto seu parceiro decai cada vez mais. A primeira versão trata-se de um conto de fadas que evidencia o processo de construção de celebridades na Era de Ouro de Hollywood (biografias eram inventadas, nomes de batismo eram substituídos, a maquiagem embranquecia eventuais rostos latinos).
Já a segunda versão, uma superprodução da era dos grandes musicais, abraçava o melodrama, evidenciava a falta de agência feminina na condução de suas carreiras em Hollywood e creditava à emasculação do parceiro da protagonista a razão de sua decadência (a certa altura, ele é chamado pelo sobrenome da sua cada vez mais famosa esposa, o que o faz se aprofundar na melancolia e no alcoolismo). A terceira troca os estúdios de Los Angeles pelos festivais de rock dos anos 1970, adotando referências como Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison. É o primeiro filme a conceder certa liberdade à protagonista, que incorpora o espírito de independência, liberdade e autoconfiança relacionados aos movimentos civis de emancipação feminina.
Na quarta e mais recente versão da história, Jackson Maine (Bradley Cooper) é uma estrela do country rock cheia de prestígio e indissolúveis questões familiares. Ciente de que a autonomia feminina não deve mais ameaçar o orgulho masculino, o filme se preocupa em tecer para Maine uma infância difícil para justificar seus ímpetos autodestrutivos e sua dificuldade em se relacionar com as pessoas. Pela primeira vez, o alcoolismo surge como uma doença e o personagem chega a comparecer a uma reunião dos AA (Alcoólatras Anônimos). Maine conhece Ally (Lady Gaga) já nos primeiros 20 minutos, numa situação unicamente possível em um filme desta geração, que une elementos como um cowboy, drag queens e Édith Piaf. A partir daí, a química entre os dois se mostra irresistível e ambos partem rumo a uma vida de apresentações musicais, discussões ébrias, encontros e desencontros.
Em sua primeira incursão como diretor, Bradley Cooper retrata, na primeira metade do filme, a rotina dos seus protagonistas com uma câmera de mão quase sempre trêmula, como numa emulação do estilo de documentário de bastidores de turnês. O truque funciona, pois confere uma naturalidade inédita à clássica história e destaca os momentos de close up no rosto dos atores em momentos de tensão. Passada certa metragem, contudo, a direção fica mais digna de um estreante, ante a falta de inventividade em cenas dramáticas ou em apresentações musicais, retratadas quase sempre com pouco movimento de câmera e excessiva aproximação aos atores-cantores.
Os atores-cantores, de fato, conquistam o carinho do público de imediato. Já especulados como oscarizáveis, Bradley Cooper e Lady Gaga formam o casal mais charmoso de todas as versões até agora. Cooper tem aqui talvez o papel mais marcante de sua carreira: ele é taciturno, misterioso, amoroso, fleumático e vulnerável. Tudo isso é conjugado pelo desejo intenso de se autodestruir, uma vez que encontrar o possível amor da sua vida na pessoa de Ally não é o suficiente para livrá-lo de tantos demônios.
Lady Gaga é outro grande acerto do longa: conhecida por seus adereços visuais, a artista aparece de cara limpa como uma jovem sonhadora e corajosa, disposta a cometer sacrifícios em busca de um sonho. Gaga impressiona não apenas pelas suas performances musicais, mas por convencer como alguém tão cheio de carisma e impetuosidade. A personagem de Gaga é intrépida como a de Barbra Streisand no filme de 1976, embora sofra da falta de agência da personagem de Judy Garland no filme de 1954. Ally/Gaga muda de aparência e de gênero musical de forma pouco sutil, sob uma influência pouco justificável de seu empresário. Transformada em diva pop, a personagem parece seguir para um rumo incerto e um tanto paródico.
Ao contrário das versões de 1937 e 1954, o filme atual falha em criticar o sistema de estrelas contemporâneo, limitando-se a uma discussão pueril sobre essência e autenticidade. O destaque da produção não é tanto o comentário social sobre a indústria da fama, mas o aprofundamento das relações humanas dos seus operários. Os momentos mais catárticos (as discussões na banheira, as canções no palco) são os que melhor desenvolvem os personagens e que mais tem a acrescentar à franquia, que, prestes a completar 100 anos, ainda tem muito a contribuir.