Demolidor: 3º Temporada – Abandono, tentação e sacrifício

Aqueles que acreditam em Deus e já tentaram seguir os preceitos da religião cristã devem entender a ânsia por recompensa e reconhecimento divino. A falsa sensação de estar fazendo algo porque acredita ser a escolha certa, mas no fundo, saber que está apenas fazendo aquilo em busca de um prêmio, seja um bem material há muito desejado, ou o direito de subir aos céus e habitar para sempre ao lado de Deus. Há também, um sentimento ainda mais conflituoso: o de se convencer que aquilo que você está fazendo é o que Deus quer pra você, isto servindo apenas como desculpa para você fazer o que quiser.
A terceira temporada de Demolidor (Daredevil, 2015 -) chega à Netflix três anos depois de sua primeira aparição no serviço de streaming. A última vez em que Matt Murdock (Charlie Cox) foi visto, no entanto, foi em Os Defensores (The Defenders, 2017), quando um prédio inteiro cai sobre ele e Elektra (Elodie Yung), e ele é dado como morto. Antes que a pergunta venha, não, Defensores não precisa ser visto para entender Demolidor 3, um simples resumo basta. Isto porque Matt de fato deixa para trás uma grande parte de si nos escombros daquele prédio, e renasce em sua terceira temporada novamente como o Homem de Preto, com uma escuridão indo bem mais além de suas roupas.

Enquanto Matt questiona seu futuro como advogado e como vigilante, Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio) consegue estabelecer um acordo com o FBI que o permite deixar a cadeia e o coloca em prisão domiciliar, em troca de informações sobre o mundo do crime. Quando Matt descobre o acontecido, ele precisa deixar seu refúgio e elaborar um plano para que Fisk seja derrotado de uma vez por todas.
A nova temporada volta a mostrar a oposição de Matt e Fisk, assim como volta a mostrar o que os tornam tão similares, ambas as facetas em uma intensidade ainda maior do que foi apresentado na primeira temporada. Matt acredita que Fisk é um mal a ser parado. Antes, o bom advogado católico acreditava que o uso da lei seria o suficiente. Agora, abatido por tantas derrotas, ao passo que vê seu inimigo voltando ao poder, o vigilante toma a posição, e decide que uma prisão não será o suficiente. Talvez seja a hora de acabar de uma vez por todas com a ameaça do Rei do Crime.

Rei este que, por sua vez, afirma apenas querer se reunir com sua amada, Vanessa (Ayelet Zurer). Viver este amor é seu objetivo maior e ele pretende mudar de caminho para conseguir alcançar isso. Estaria Matt se desvencilhando de suas crenças e princípios e mergulhando de vez no caos e violência? Estaria Fisk se arrependendo de seus atos e entrando em um caminho de redenção? Com seus estados de espírito devidamente representados com o preto e o branco, ambos se encontram no meio, e formam o cinza que torna a série o que ela é. A esse ponto, parece clichê falar que personagens de um filme ou série não são maniqueístas, mas possuem tanto o bem e o mal dentro de si. De todo modo, essa é a verdade em Demolidor.
Um outro bom exemplo disso é o Agente do FBI Benjamin Poindexter (Wilson Bethel), que depois de ser jogado para debaixo do ônibus pela agência a que ele se dedicou tanto, acaba sendo seduzido pelas artimanhas de Fisk. Poindexter é apresentado em níveis diferentes. De início, ele é o agente do FBI que está cumprindo seu trabalho. Depois, em um flashback com uma narrativa inovadora (e espetacular) dentro da série, vimos que há algo a mais no personagem, algo que não está certo. E por fim, ele se torna o antagonista. Mas, neste ponto, já conhecemos o personagem tão bem que não conseguimos apenas colocá-lo como “o vilão”.

Ele é alguém, como todos os outros, que está seguindo seu próprio caminho. Assim como os conhecidos Karen (Deborah Ann Woll) e Foggy (Elden Henson), e os novatos agente Nadeem (Jay Ali) e a Irmã Maggie (Joanne Whalley), sobre os quais é preferível não saber muito. Em sua quarta aparição nas séries da Netflix, Karen se prova a mulher mais corajosa do Universo Marvel (em uma cena de prender o fôlego) e finalmente conhecemos mais sobre seu passado desolador. Foggy, embora tenha crescido profissionalmente, continua em uma amizade abusiva, não apenas com Matt, mas agora também com Karen, dando total sentido à frase Foggy Nelson deserves better™.

Com 13 episódios de pouco mais de 50min cada, é compreensível pensar que a temporada tem chance de explorar a história de cada personagem de forma satisfatória, e isso é verdade até certo ponto. Todos os personagens têm sua relevância para a história, e a grande maioria vai ganhando mais e mais destaque ao longo da temporada. Isso acontece, no entanto, em detrimento à jornada de Matt, que começa com força total, e acaba concluindo em uma resolução não muito bem explorada. Alguns diálogos também se mostram repetitivos demais e por vezes até mesmo bregas, mas estes não existem em número suficiente para comprometer a temporada.

 

Partindo para os pontos altos, depois de chamar atenção com a cena da luta no corredor™ na primeira temporada (com pouco mais de 3min) e expandir do corredor para as escadas na segunda (cena com cerca de 5min), o terceiro capítulo da saga do Demônio de Hell’s Kitchen possui, sim, a melhor cena de luta da série, que se estende por mais de 10min em um plano sequência e tem uma das melhores coreografias de luta da televisão (e mesmo do cinema). A fotografia da série continua como um ponto alto, com o vermelho clássico do Demolidor tendo forte presença. As atuações de todo o elenco são louváveis, mas Vincent D’Onofrio nunca será elogiado o suficiente pelo sua interpretação de Wilson Fisk. O ator consegue levar o personagem da doçura ao terror de uma forma tão habilidosa que é justo dizer que o Rei do Crime é um dos melhores antagonistas do Universo Marvel, tanto no TV quanto no cinema.
A terceira temporada de Demolidor é, sobretudo, sobre sacrifícios, e Matt tem de escolher se deve sacrificar aquilo que ele representa para que seu inimigo possa ser derrotado. Embora um tanto criticada, a segunda temporada da série trouxe através de Frank Castle, o Justiceiro (Jon Bernthal), uma frase que de uma forma ou de outra veio assombrar Murdock: “Você está apenas a um dia ruim de ser eu”. E quando sua fé se esvai e você se distancia de Deus, o mundo começa a sussurrar, e depois a gritar, dizendo que o único jeito de vencer é usando jogo sujo. E é então que percebemos que a escuridão sempre paira sobre nós, e que o que nos move para frente é a luz guia daqueles que amamos.