Para mim filmes distópicos PRECISAM ter um toque político, uma espécie de aviso sobre o que nossa sociedade pode encontrar pela frente, muitas vezes essa mensagem pode vir de forma exagerada, ás vezes protagonizada por um brucutu porradeiro, às vezes até bem humorada, mas ela sempre deve estar lá, seja mais sutil ou mais escancaradamente, mas ela tem que estar lá. Essa é a principal função do gênero (seja na literatura, no cinema ou nos video games).
Claro que eu nem sempre pensei assim. Quando era mais novo eu obviamente assistia Tropas Estelares (Starship Troopers, 1997) somente para ver a guerra sangrenta entre humanos e insetos alienígenas, ou Robocop: O Policial do Futuro (Robocop, 1987) pra ver um cara metade robô com uma pistola irada metendo bala em bandidos, e aquele O Sobrevivente (The Running Man, 1987) só pra ver o Schwarzenegger se matando pra vencer aquele jogo maluco dos infernos. Mas revendo essas pérolas, que tantas vezes foram e ainda são subestimadas, e refletindo um pouco sobre elas, não é difícil perceber o que eles queriam realmente nos dizer (para além da violência e da porradaria). Se este tipo de filme não tivesse esta abordagem político-social como plano de fundo, eles se tornariam rasos e sem sentido, como se trazer essas reflexões aproximassem a narrativa do espectador, e por mais simples que a ideia base destes filmes fosse, uma sementinha de dúvida e, consequentemente, reflexão era sempre plantada ali, afinal de contas pensar sobre o futuro é quase sempre assustador.
Nos dois filmes seguintes, Uma Noite de Crime: Anarquia (The Purge: Anarchy, 2014) e 12 Horas Para Sobreviver: o Ano da Eleição (The Purge: Election Year, 2016), ambos ainda dirigidos e roteirizados por DeMonaco, a ideia é ainda mais desperdiçada. Há, sim, uma expansão do universo, e conseguimos descobrir um pouco mais sobre o que envolve o Expurgo, mas o diretor parece a todo momento fugir da responsabilidade de tratar o tema central da ideia com o devido valor que merece, utilizando a boa ideia base apenas como bandeja para colocar mais um filme de ação comum, me deixando extremamente decepcionado e desacreditado com a franquia.
Iniciamos com os preparativos para a primeira experiência, que acontecerá não ainda em todo o país, mas apenas na cidade de Staten Island, por uma questão geográfica, já que é uma ilha, possibilitando melhor controle e vigilância do governo, mas também por ser uma área de altos índices de criminalidade e violência, habitada em sua maior parte por uma população de afro-americanos marginalizados. Assim, a NFFA passa a oferecer uma recompensa de cinco mil dólares para as pessoas que permanecerem na cidade durante o experimento, o que faz com que esta população carente seja compelida a continuar na ilha. Somos apresentados então a alguns dos personagens que seguiremos no filme: Dmitri, um estiloso gangster, líder do tráfico de drogas na cidade, Nya, uma militante dos direitos humanos que combate a implementação do Expurgo, e seu irmão, Isaiah, um jovem que se vê obrigado a fazer parte do tráfico para conseguir algum dinheiro.
Todo o primeiro ato do filme se dá nesta preparação para o experimento. Dmitri, temendo que o Expurgo atrapalhe seus negócios e abra possibilidade de seus concorrentes agirem para eliminá-lo, orienta seus homens a não participarem e protegerem a “mercadoria”, enquanto Nya decide ficar na cidade para ajudar os cidadãos a se manterem seguros, abrigando boa parte de sua vizinhança em uma pequena igreja do bairro. Já Isaiah decide, sem contar para a irmã, participar ativamente do experimento após ter sido ameaçado e ferido por um maluco enquanto vendia drogas, vendo ali a oportunidade de se vingar e ainda conseguir alguma grana.
A partir daí o filme segue uma narrativa simplista e comum a todos os outros da franquia, todos devem tentar sobreviver durante essas 12 horas de crimes liberados. No entanto, o filme decide aproveitar esta premissa para, simbolicamente, tocar em várias questões sociais que permeiam a sociedade estadunidense (mas não apenas ela), e isto fica bastante claro. Em certo momento um grupo de homens brancos vestindo a clássica indumentária da KKK e ostentando bandeiras com a cruz negra em fundo branco, símbolo do grupo racista, ataca as pessoas abrigadas na igreja, fazendo uma referência óbvia ao massacre na cidade de Charleston que matou nove pessoas negras em 2015. Em outro momento um grupo vestido com uniformes policiais espanca negros em um estádio de basebol com uma tela gigante ao fundo mostrando a bandeira americana, e o grupo que ataca os protagonistas ao final está usando um uniforme militar que lembra o do exército nazista e um deles veste um sobretudo que faz referência à SS, o grupo paramilitar que era o braço armado do partido nazista alemão. E esses são apenas alguns dos vários simbolismos mais óbvios que são apresentados no filme, deixando clara a influência dos videoclipes “This is America“, de Childish Gambino e “APES**T” dos Carters (Beyocé e Jay-Z), mas também do filme Corra! (Get Out, 2017). Desta forma, o gangster negro passa a ser o “herói”, já que o filme não é sobre o tráfico de drogas ou sobre o crime organizado, mas sim sobre uma questão racial tão cara à história do país (mas também do mundo), e o “vilão” passa a ser o governo, majoritariamente branco e rico, ávido para se livrar dessa população negra periférica.
É claro que há várias contradições no filme, como o fato de o gangster ser um criminoso e, assim como o expurgo, ser também prejudicial à população periférica que tenta salvar no filme (algo que até é mencionado por Nye no início, mas convenientemente não volta).
Em um momento em que vemos um crescimento tão desenfreado, em todo o mundo, de uma ultra-direita que parecia enfraquecida, mas que se mostra cada dia mais ameaçadora, em que grupos de neonazistas e supremacistas brancos se veem livres para cometer qualquer tipo de atrocidades (seja física ou virtualmente), em que o presidente dos EUA é um homem branco claramente racista (e um certo candidato à presidência do Brasil não fica muito atrás), seria quase irresponsabilidade manter uma franquia com um potencial como este no marasmo em que se encontrava. E este foi o maior acerto e a maior contribuição do diretor Gerard McMurray (um afro-americano) a The Purge. É uma pena que o filme, muito provavelmente, vai fracassar nas bilheterias, já que o público que irá buscá-lo nos cinemas será aquele que se agradou de seus antecessores e que irá estranhar esta “politização repentina” que a franquia tomou para si.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.