“Ou você morre como um herói, ou vive o bastante para se tornar um vilão” Essa frase, extraída do filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008) poderia muito bem sintetizar o que dá para esperar do filme em si. Outrora bom, mas que foi perdendo seu brilho com o passar dos anos. Contudo, “poderia” é um tempo verbal que não se aplica muito aqui. Portanto, este, que é o segundo filme da trilogia homônima sobre o Batman, dirigida por Christopher Nolan, continua sendo um dos melhores filmes de super-heróis já feitos.
Lançado há exatos 10 anos, O Cavaleiro das Trevas (ou TDK para os fãs) chegou ao mundo em 2008, ano emblemático para o cinema de heróis ou de filmes inspirados em quadrinhos de uma forma geral. Só para recordar, esse é o ano que chegam aos cinemas filmes como o primeiro Homem de Ferro (Iron Man) e O Incrível Hulk (The Incredible Hulk) filmes que davam os primeiros passos do Universo Cinematográfico da Marvel, um projeto ambicioso e até então inédito para o gênero. Até então, os filmes de super-heróis ou inspirados em quadrinhos vinham alternando bons e maus filmes desde a década de 70. Clássicos como o Superman: O filme (Superman, 1978) dirigido por Richard Donner que trazia Christopher Reeve no papel principal (visto por muitos fãs, eu incluso, como o Superman definitivo); Batman (Batman, 1989) e Batman: O retorno (Batman Returns, 1992) ambos dirigidos por Tim Burton apresentavam um Batman (Michael Keaton) mais sombrio em uma Gotham bastante perturbadora procurando se afastar de vez da figura criada do homem morcego que tinha sido desenhada até então no seriado dos anos 60. Esse filmes citados eram exceção à chuva de filmes fracassados do período, vamos lembrar das continuações do Superman, do filme para televisão do Capitão América nos anos 80, do filme do Flash também para televisão, além de uma versão nunca vista do Quarteto Fantástico feita nos anos 90. Além, é claro, dos pavorosos Batman Eternamente (Batman Forever, 1995) e Batman & Robin (1997), dirigidos por Joel Schumarcher.
O cenário começou a mudar com o primeiro filme dos X-Men para o cinema, lançado em 1999 pela FOX, seguido de perto pelo filme do Homem-Aranha em 2001, pela Sony. Além disso, tivemos um certo sucesso com a adaptação de Blade: o caçador de vampiros, o que rendeu ao filme uma continuação. Todos esses três exemplos foram sucesso de bilheteria e seguindo a lógica da indústria americana, continuações foram produzidas sempre na tentativa de manter o padrão e seguir com a narrativa dos filmes anteriores. Algo que fora tentado na década de 70, 80, 90, mas que não obtiveram sucesso, pois a indústria ainda não parecia estar preparada para esse tipo de filme/público. Esses filmes de sucesso do final da década de 1990 e início dos anos 2000 foram responsáveis pela elaboração de uma fórmula de considerável sucesso (se olharmos os números): A aposta eram trilogias em universos fechados. Então, mediante a isso, surgiram os três filmes dos X-Men, do Homem-Aranha e do Batman. Evidentemente, essa fórmula não era infalível e aberrações surgiram nesse meio tempo. Para ser justo e ficar com um exemplo de cada estúdio: Demolidor, o Homem Sem Medo (Daredevil, 2003) e Mulher-Gato (Catwoman, 2004). O primeiro estúdio a questionar essa fórmula e procurar adaptá-la, através do conceito de universo compartilhado, foi a Marvel com seus dois filmes lançados em 2008, a posteriori a Marvel foi comprada pela Disney o que permitiu que esse modelo de universo compartilhado permanecesse e rendesse ao estúdio do Mickey uma das franquias de maior bilheteria de todos os tempos.
Nesse meio tempo, é entre a retomada dos filmes de quadrinhos no final dos anos 90 e a ascensão e domínio do mercado pela Disney/Marvel que está inserido O Cavaleiro das Trevas. O filme, que era uma continuação direta do excelente Batman Begins (2005), traria consigo uma nova versão do Coringa. A última e, até então a melhor, era a vivida por Jack Nicholson no primeiro filme do Tim Burton. Tudo isso, aliados a um mistério envolvendo a produção do filme e o roteiro, eram os ingredientes perfeitos para que a expectativa dos fãs crescesse cada vez mais. A tarefa não era fácil, Batman Begins foi responsável por dar um reboot no universo do Homem-Morcego no cinema, estreando em 2005, cerca de 7 anos após o galhofa Batman & Robin. O universo criado por Nolan com o primeiro filme de sua trilogia era pautado em uma ideia mais realista e humanizada do Bruce Wayne/Batman tanto que a frase que embala o filme é o do recomeço “Por que caímos? Para aprendermos a levantar…”
O segundo filme mantém essa pegada realista e amplia em outras direções, o foco nessa continuação passa a ser o intelecto, os conceitos éticos e morais de uma sociedade corrompida. A instrução do Coringa e o diálogo do Alfred com Bruce Wayne sobre o ladrão que se escondeu na floresta são a marca disso. Enquanto Batman segue uma determinada quantidade de regras e age de maneira sistemática, Coringa é o próprio caos, não respeitando nada, nem mesmo sua sanidade ou suas decisões, “alguns homens só querem ver o circo pegar fogo”. Como falamos antes, esse filme tinha a difícil missão de introduzir um novo Coringa, novos conceitos, trejeitos, algo que pudesse ser tão impactante quanto o do seu antecessor. Isso poderia acontecer no decorrer do filme, aliás o normal seria que fosse desse jeito, mas em uma sábia decisão de direção e montagem, o filme opta por iniciar apresentando o vilão. Toda a cena do roubo ao banco e de como tudo foi orquestrado e planejado finalizando de maneira épica com o Coringa tirando a máscara e dizendo: “Eu acredito que aquilo que não nos mata nos torna mais… Estranhos.” Esse conjunto de fatores foi necessário para que em menos de 5 minutos o público já soubesse a que esse personagem veio e o quanto ele é perigoso. Essa cena de abertura é digna de respeito e reconhecimento como uma das mais importantes e impactantes da história do cinema, a montagem e o ritmo dessa cena, aliados ao roteiro afiado e cheio de frases de efeitos aproximam Nolan dos grandes diretores da história do cinema, cujo domínio de seus personagens e de decupagem cinematográfica era total.
O roteiro aprofunda mais essas questões morais e éticas. O filme faz questão de mostrar esses questionamentos o tempo todo, um dos exemplos mais claros é a cena com os dois barcos. Em um deles, cidadãos comuns querendo deixar Gotham, no outro os presos, cada um dos navios contém um detonador para explodir o outro. Toda essa tensão moral reflete o que o filme vem trazendo até o momento, por fim nenhum dos navios explode, mostrando que os cidadãos comuns não sucumbiram ao lado do mal e que mesmo os presos, condenados, têm um lado humano. Contudo, a atenção maior está na figura do Coringa. É através dele que o inesperado acontece e que os questionamentos vem. Ao mesmo tempo que o filme faz referência à A Piada Mortal, em que o vilão quer provar para o Batman e para todos que o homem mais justo pode sucumbir à loucura (no quadrinho é o comissário Gordon e no filme, Harvey Dent), ele se distancia da HQ de Alan Moore, quando este opta por contar a origem do Coringa nos quadrinhos, o filme se afasta disso dando ao personagem várias origens diferentes, gerando uma dúvida e um questionamento ainda maior no espectador. Ainda em relação ao roteiro, ele também é responsável por desenvolver ainda mais os personagens presentes no primeiro filme. A relação de Bruce Wayne e Rachel Daws (embora eu não goste desta relação, admito que ela é bem feita), a relação Bruce Wayne, Alfred e Lucius Fox e, sobretudo, a relação Batman e Comissário Gordon. Todos esses personagens têm em algum momento um diálogo memorável ou uma cena inesquecível.
As atuações do filme estão magníficas com pequenas ressalvas. Começando por Heath Ledger como Coringa, escolha que foi duramente criticada pelos fãs se mostrou acertada, além de ter interpretado um dos maiores vilões da ficção (todo tipo de ficção, não só quadrinhos) ele foi responsável pela criação de uma das interpretações mais icônicas do personagem, a loucura e os trejeitos do seu Coringa ficarão marcados nos corações dos fãs, pois justamente ele busca um distanciamento do personagem vivido por Jack Nicholson e entrega algo diferente, novo e inesquecível, sua interpretação é tão poderosa que lhe rendeu um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante (embora acredite que ele merecia estar na categoria principal, pois o filme é movido basicamente por ele). Michael Caine entrega um Alfred carismático e atencioso que rende bons diálogos com Bruce Wayne, sempre preocupado com o bem-estar de seu protegido, o ator entrega e convence no seu papel. Maggie Gyllnhaal entrega uma Rachel Dawes melhor que sua antecessora Katie Holmes, embora eu ache a personagem desnecessária desde o primeiro filme, admito que a relação entre Rachel e Bruce/Batman é bem feita; Aaron Eckhart é outro que destrói dentro do filme mostrando toda sua tenacidade como Harvey Dent e sua sede pela justiça sendo corrompida pelos ideais do Coringa; Gary Oldman apresenta o melhor Comissário Gordon da trilogia inteira, seu companheirismo e lealdade são peças-chaves na construção de seu personagem.
Christian Bale é minha única ressalva do filme, antes de mais nada é preciso separar suas atuações, uma como Bruce Wayne e outra como Batman. Como homem-morcego certamente é uma interpretação sólida, aprofundando o que foi desenvolvido no primeiro filme e trazendo novas camadas, novos widgets e novos recursos, tudo que se espera como Batman. Já como Bruce Wayne eu sinto que o personagem regrediu um pouco em relação ao primeiro filme, suas ações e frases parecem muito robóticas e não há convencimento total de que ele seja realmente Bruce Wayne. Para se tornar Bruce, não basta tão somente colocar um terno e frases de efeitos com relação a seu dinheiro, o personagens tem mais camadas que isso e sinto que poderia ter sido mais desenvolvida tanto pelo ator quanto pela equipe de direção. Essa ressalva não estraga em nada a experiência com o filme, é apenas algo que me incomoda um pouco.
A trilha sonora é espectacular, Hans Zimmer pega o que já era bom no primeiro filme e transforma em algo realmente épico, todas as cenas de ação são regadas à boas composições que colaboram para o desenvolvimento de personagens e tensão. Os efeitos visuais são bons, não chega a se tornar algo datado, mesmo que seja possível ver o CGI em algumas cenas, embora ainda esteja longe de incomodar de verdade os olhos do espectador. A montagem do filme, dos aspectos mais técnicos foi a que mais evoluiu em relação ao filme anterior. No primeiro filme, as cenas de ação eram um pouco confusas por conta de uma decupagem não tão detalhada e de uma montagem que talvez não estivesse acostumada a filmes assim. Isso foi corrigido no segundo filme. Apresentando um ritmo melhor que no primeiro e com cenas de ação melhor montadas, presenteando o público com combates memoráveis.
O Cavaleiro das Trevas deixa como herança a ideia de que o filme de super-herói não é somente escapismo. É possível tratar de questionamentos de uma sociedade neles, na verdade isso retoma um pouco a ideia dos primeiros quadrinhos sejam da DC ou da Marvel, no qual personagens que com pouca visibilidade ou que pertenciam a grupos que não são bem aceitos na nossa sociedade tinham seu devido lugar e representatividade. Temas sérios como ética e moral também perpassam a história das HQs. Contudo essa herança só foi possível graças ao bom roteiro, boa direção e boas atuações, pela coragem que o filme teve de abordar tudo isso. TDK tem sua marca na história não só do gênero, mas do cinema como um todo. “Ele é o herói que Gotham merece, mas não o que ela precisa agora, ele é um guardião silencioso, um protetor vigilante. O Cavaleiro das Trevas.”
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Atual Vice-presidente da Aceccine e sócio da Abraccine. Mestrando em Comunicação. Bacharel em Cinema e formado em Letras Apaixonado por cinema, literatura, histórias em quadrinhos, doramas e animes. Ama os filmes do Bruce Lee, do Martin Scorsese e do Sergio Leone e gosta de cinema latino-americano e asiático. Escreve sobre jogos, cinema, quadrinhos e animes. Considera The Last of Us e Ocarina of Time os melhores jogos já feitos e acredita que a vida seria muito melhor ao som de uma trilha musical de Ennio Morricone ou de Nobuo Uematsu.