Ilha dos Cachorros – não há futuro na Ilha do Lixo

Depois de realizar o longa-metragem animado O Fantástico Sr. Raposo (Fantastic Mr. Fox, 2009), nove anos trás, o diretor Wes Anderson retorna para a técnica de animação stop motion e nos apresenta um novo cenário, ainda sobre a temática da disputa de animais contra seres humanos, mas dessa vez para discutir as relações de afeto representadas no relacionamento do menino Atari (voz de Koyu Rankin) e seu cão Spots. Sou fascinado pela cultura oriental, pela estética de direção do Wes Anderson e pelas técnicas de animação stop motion, confesso que a soma desses fatores elevou minha expectativa sobre Ilha dos Cachorros (Isle of Dogs, 2018) às alturas, porém, apesar de sentir que não cobriu inteiramente essa espera, a animação tem seu mérito por trazer questões tão profundas e de maneira tão sutil sobre nosso relacionamento com animais domésticos.

O universo da obra já se apresenta de maneira chocante desde o seu trailer: em 2038, uma terrível gripe canina ameaça a saúde das pessoas que vivem no arquipélago japonês e como medida de segurança o prefeito Kobayashi (voz de Kunichi Nomura)  decide pela expulsão e contenção de todas as raças de cães para a Ilha do Lixo, agora conhecida como Ilha de Cachorros. O cenário consistente do filme de Wes Anderson permite que o público, não apenas acredite na situação e nas questões sociopolíticas mas também participe das discussões: você teria um cachorro nessas circunstâncias? Cuidaria do seu cachorro às escondidas em uma região de gripe canina sem cura? até onde vai o amor e companheirismo em consideração ao medo e ao perigo desse relacionamento? Os lados afloram e fazem o início do filme ser enriquecedor e instigante. Apesar disso, no decorrer do filme, os movimentos e manifestações do “pro-cães” e “contra-cães” aos poucos vão se mostrando cada vez mais como heróis e antagonistas, respectivamente. A obra deixa essas discussões políticas na cidade, e passa a acompanhar a aventura de Rex (voz de Edward Norton), King (voz de Bob Balaban), Duke (voz de Jeff Goldblum), Boss (voz de Bill Murray) e Chef (voz de Bryan Cranston) ajudando Akira na sua empreitada para encontrar seu cão Spot. Os nomes não são por acaso, todos são nomeados por sinônimos de liderança na tentativa de mostrar que fazem parte de um grupo onde não há um líder e, dessa maneira, mostrar oposição a relação de poder entre o homem e cachorro. O filme se eleva ao apresentar as questões de companheirismo entre Chef, um cachorro que nunca foi domesticado, e Akira, o humano que está atrás de seu melhor amigo cão, além da reação dos outros cães do grupo no decorrer do processo. Aqui está a força do longa-metragem de Wes Anderson, nos fazer refletir sobre um relacionamento que é muitas vezes baseado em ordem e recompensa, sobre guiar e ser guia, e por fim, companheirismo e medo. Diferente das relações entre os núcleos de seres humanos e os demais animais apresentados no Fantástico Sr. Raposo, em Ilha dos Cachorros entramos uma escala de cinza muito maior e camadas mais extensas, nos fazendo pensar em como é peculiar o relacionamento de ordem e submissão entre dois indivíduos. Acredito que aos amantes de cães, esse filme será levado a outro nível, eu mesmo que tenho um gato gordo em casa já fiquei bastante envolvido – apesar dos gatos, durante o filme, serem mostrados apenas como figurantes esnobes.

Apesar de um grande nível, camadas e debates interessantíssimos sobre medo e afeto, o filme decresce quando mais se espera que ele cresça. Da segunda metade do filme para frente, sente-se a falta de reviravoltas inesperadas, levando ao público a se contentar com momentos previsíveis e saídas cômodas de roteiro, porém sem furo. O desenrolar da história nos leva a aproximar de personagens que no fim não tiveram seus papéis bem administrados e acabaram tornando suas ações superficiais e sem os impactos que poderiam ter. Mas, veja bem, isso não retira ou diminui a força das discussões que o filme trás e aborda, o final não é ruim, no entanto, é fácil sentir que o fim poderia ter tido uma força tão enriquecedora quanto o seu início.

Aos que conhecem o diretor e sua estética, não devem esperar por menos. Tecnicamente o filme é impecável. Enquadramentos, decupagem, arte e fotografia como já é conhecida a estética das obras de Wes Anderson. É esperado, mas ao mesmo tempo é incrível, os movimentos sutis dos cães, os movimentos dos pelos ao vento. Existe uma tendência de muitos filmes animados de pegar personagens animais e torná-los bípedes humanoides para facilitar a movimentação e a linguagem da narrativa ao público infantil, porém, aos poucos isso se tornou cômodo, sendo um recurso utilizado em milhares de estúdios e obras, mas em Ilha dos Cachorros acaba se destacando a animação que procura manter os movimentos naturais e reais dos cães, sendo apenas adaptado a essas ações as falas e expressões “humanas”. Não digo que o contrário é melhor ou pior, mas sem dúvida animar movimentos tão fiéis ao seu objeto de estudo é um trabalho de pesquisa custoso e difícil. Fica fácil de entender o motivo ao assistir os vídeo de making of (que você pode ver aqui embaixo) onde toda a equipe passava seu cotidiano de trabalho ao lado de vários cães perambulando pelo set.

A paleta de arte é bem construída usando muitas vezes cores complementares para dar o contraste certo nos objetos e nos personagens, mesmo com o cenário cheio de informação e textura. Confesso que fiquei bastante frustrado ao perceber o nível de 3D e computação gráfica que colocaram no filme Kubo e as Cordas Mágicas (Kubo and the Two Strings, 2016), onde o estúdio se preocupa tanto em deixar a imagem do longa-metragem tão “perfeita” que, dessa maneira, se perdem as “imperfeições” das texturas dos bonecos e dos cenários que é o que torna o stop motion, na minha opinião, tão verídico, enquanto em Ilha dos Cachorros, você consegue identificar todos os detalhes e consistências visuais do stop motion. O público visualiza bem a roupa bordada, o cenário pintado, os pelos ajustados e desajustados, mantendo viva a textura de cada material. Além da trilha sonora de Alexander Desplat, executada por percussão japonesa – taikô -, onde traz uma imersão do público ao ambiente oriental de Ilha dos Cachorros.

Por fim, confesso que o final não me satisfez, porém, o filme cumpre seu propósito e entrega o que se vende. Não tem como você não se apegar a situação lamentável dos cães na ilha coberta de lixo, mas, ao mesmo tempo, você ri e se diverte com toda a interpretação e a aventura que os personagens se envolvem. Importante ressaltar que temos animadores brasileiros na equipe do filme e que fizeram um trabalho incrível. Indico assistir o filme no cinema, onde ele certamente trará muito mais impacto nas suas texturas e nas camadas de som. Para amantes de cães e da cultura oriental, é um prato cheio!