Um suave canto de ninar que embala Nova York inicia O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968), filme de Roman Polanski, que está completando cinquenta anos. Porém, se todas as canções que nossos pais inventavam para nos fazer dormir tinham o desejo de que adormecêssemos tranquilos, longe dos fantasmas que podem povoar nossos sonhos, desde o seu início o filme parece instigá-los a criar forma e nos assustar – como fazem todos os bons filmes de terror. A câmera se detém no sinistro Edifício Dakota, e será através de um movimento de intrusão, que deseja penetrar nesse prédio, nas paredes dos seus apartamentos e também em nossos medos sobre o desconhecido, que Polanski orquestra um dos filmes mais aterrorizantes do cinema, nos causando a angústia da impotência de nos vermos presos em algo terrível e muito maior que nós mesmos.
Há cinquenta anos, o mundo parecia estar passando por mudanças intensas. As revoltas estudantis eclodiam nas ruas de Paris, a revolução sexual se afirmava no comportamento da juventude, os hippies questionavam a Guerra do Vietnã e o movimento negro se articulava para conseguir os diretos civis nos Estados Unidos. O ano de 1968 é, muitas vezes, descrito como aquele que não acabou e, de fato, se algo acabou, parece ter sido a ilusão de que vivemos num mundo estável. São nesses tempos turbulentos que estreia O Bebê de Rosemary, e tal qual essa efervescência dos anos 1960, seus ecos ainda podem ser sentidos nos dias de hoje.
Na trama do filme, nós acompanhamos Rosemary e Guy Woodhouse, um jovem casal que se muda para o velho apartamento de uma senhora que acabara de falecer. Rosemary é a jovem esposa que planeja ser mãe e está animada com a nova vida que o apartamento pode proporcionar, enquanto Guy é um ator ambicioso, à procura de um papel mais relevante que suas pontas em propagandas.
O passado sinistro do edifício – no qual já ocorreram seitas macabras, rituais canibais, o abandono de cadáveres de crianças – não demora a se revelar. Móveis fora do lugar, marcas pelo chão, além de encontros estranhos com os moradores, anunciam que mesmo quando se está dentro da segurança da casa e do casamento, há sempre a ameaça de uma invasão que perturbe a ordem.
Desde a escolha dos atores – Mia Farrow e John Cassavetes, representantes da inovação do cinema americano – às ações dos personagens há o interesse em retratar um casal dos novos tempos. A atuação naturalista de Farrow e Cassavetes, junto com a câmera fluida de Polanski, que passeia entre os espaços e os personagens, quase num tom documental em alguns planos, vai construindo uma intimidade intensa entre o espectador e os personagens, causando sensação de estarmos muito próximos a eles, quase invadindo seu espaço. Essa também era uma novidade para o cinema americano, que na época também estava assimilando as influências da Nouvelle Vague e dos Cinemas Novos ao redor do mundo, para se reinventar.
Toda essa sensação de modernidade, narrativa e estética, apresentada por Polanski, no entanto, vai sendo ameaçada justamente por algo conservador e arcaico, que está bem próximo, permeando as paredes pelas entranhas. O perigo realmente mora ao lado e tem a aparência inofensiva de um excêntrico casal de idosos: os Castevet. Após o suicídio de sua empregada, eles tentam insistentemente participar da vida de Rosemary e Guy. Batem na porta, organizam jantares, oferecem presentes – tudo de um modo invasivo, mas disfarçado pela aparente doçura e cuidado de uma boa vizinhança. Por trás do comportamento inusitado, há também a proposta de um pacto, que atiça a ambição de Guy: engravidar Rosemary, para que ela dê a luz ao Anticristo, em troca de seu sucesso profissional.
Polanski sabe muito bem que o que se esconde da plateia pode ser muito mais aterrorizante do que o que se mostra. O que desconhecemos consegue nos atingir com muito mais força, porque nossa mente articula-se para promover um medo particular. É por isso que Polanski decide filmar toda a história pelo ponto de vista de Rosemary: assim como ela, nós desconhecemos a aliança entre Guy e os Castevet. Ficamos apenas acompanhando, num nível de intensa projeção e identificação com Rosemary, os efeitos perversos que esse pacto causa em seu corpo e em sua mente. É na escolha de permanecer nesse ponto de vista que reside a força do filme.
Após o pacto, todo o filme se modifica, tornando-se cada vez mais sombrio. A relação cúmplice de Guy e Rosemary é marcada agora pelo engano. Dopada pelo marido, ela é violada por ele enquanto dorme. É num angustiante estado, que transita entre a consciência e o sonho, que Polanski retrata o ato de violência. Já que o estupro é parte do ritual da cópula, Guy se mistura à figura do demônio. Imagens desconexas do fluxo de sonho se juntam aos cantos ritualísticos entoados na trilha sonora. Mesmo nessa estética de sonho, Polanski busca uma sensação de realismo, para que o horror do ato pareça real e assim nos assuste, para que sintamos que aquilo (por mais absurdo que possa parecer) tem a possibilidade de acontecer.
A gravidez de Rosemary inicia uma transformação na angelical Mia Farrow, que vai adquirindo, pela magreza de seu rosto e pelo icônico cabelo curto do corte de Vidal Sassoon, o crescente aspecto de uma fragilidade assustadora. Dentro de Rosemary há, como em toda gravidez, um corpo estranho que cresce. Porém, as dores que a atingem são mais fortes, não só porque ela gera o Anticristo, mas também por não ter conhecimento disso. O corpo de Rosemary é duplamente invadido: pelo bebê e pelas pessoas nas quais ela mais acredita.
Polanski, assim como em muitas vezes em sua filmografia, injeta um sentimento sufocante no espectador, que é potencializado por sua mise-en-scène de frequentes closes nos rostos, assim como pela câmera na mão que se fixa aos personagens em claustrofóbicos interiores. Seja nos ambientes fechados ou nos exteriores, a câmera de Polanski não deixa de se movimentar, causando um efeito nauseante, que se atrela à angústia proposta na narrativa.
O mundo nos filmes de Polanski, que vivenciou de perto os horrores do holocausto na Segunda Guerra Mundial, sempre parece cínico e pessimista. Talvez seja por isso que por mais que Rosemary tente resistir, todas as suas alternativas acabam falhando. Sua identidade vai aos poucos também sendo destituída: Guy mantém sues amigos à distância, os Castevet a cercam com amuletos e bebidas adulterados, o conhecimento é negado a ela através da recomendação médica de não ler livros – dessa forma, ela segue sendo enganada e forçada a se comportar segundo os outros desejam.
Nos dias de hoje, talvez seja impossível (e também problemático) falar sobre algo relacionado ao cineasta Roman Polanski sem mencionar as acusações de abuso sexual que pairam sobre o seu passado. A época em que vivemos está finalmente contribuindo para que muitos comportamentos abusivos permitidos em nossa sociedade patriarcal sejam questionados e modificados. O ano de 2017 foi marcado pelas inúmeras mulheres que denunciaram os assédios e estupros cometidos pelo produtor de cinema Harvey Weinstein. O #MeToo está revelando a cortina de fumaça que a indústria do cinema sempre colocou sobre seus homens poderosos, alcançando feitos inimagináveis há alguns anos: em vez do descrédito, essas mulheres enfim estão sendo ouvidas e acreditadas.
Há estranhas coincidências que rodeiam todo o filme. A atriz Sharon Tate, esposa de Polanski, foi assassinada grávida em 1969 pela seita de Charles Manson. Em 1980, John Lennon foi assassinado na frente do edifício onde o filme foi rodado. Porém, há também o desconfortável fato de Polanski, condenado pelo estupro de Samantha Geimer, uma adolescente de treze anos, numa festa nos anos 1970, ser justamente o realizador de um filme sobre violação. Pois o Bebê de Rosemary, através de uma brilhante atuação de Mia Farrow (que, posteriormente, teria seu ex-marido, o diretor Woody Allen, envolvido no caso de abuso de sua filha adotiva) além de ser um filme de terror, é também um filme sobre uma mulher que é violentada e invadida e sobre os efeitos dessa violência. Não há sustos repentinos e banhos de sangue: o impacto que o filme causa no espectador ainda é tão forte pois, para além do sobrenatural, o terror apresentado é também uma realidade – está logo ao lado, nas pessoas mais confiáveis.
Considerado uma das obras-primas do terror, O Bebê de Rosemary consegue, ao instaurar uma atmosfera de perigo e de suspense, nos envolver psicologicamente em sua narrativa. Polanski utiliza-se das convenções do gênero para também refletir sobre temas caros à sociedade de seu tempo: a paranoia com o desconhecido, o questionamento sobre os papéis exercidos no casamento, a consciência da mulher sobre o próprio corpo e o medo gerado pela perda da confiança.
No berço tingido de preto, a inquieta criatura chora e se mexe, mas nunca chegamos a vê-la. Ficamos apenas com os olhos esbugalhados que Rosemary tem ao olhá-lo e, assim, criamos o horror com nossa própria imaginação. Polanski convoca o medo para cada plano do filme, que termina com o bebê sendo ninado por sua mãe, enquanto os outros celebram o ano “um”. Ela, por vontade ou conformidade, acaba embalando a criatura que foi gerada sem o seu consentimento.
A cada revisão sempre tenho a sensação de arrebatamento, que surge quando estamos diante de um grande filme. É impossível não ser levado por essa narrativa que consegue, como poucos filmes, penetrar e se conectar com os medos de quem o assiste. Nesses cinquenta anos que se passaram, porém, é também inevitável pensar na relação entre a violência sofrida por Rosemary e os atos cometidos por Roman Polanski. Se é pelos olhos e pelo sentimento de Rosemary que vivenciamos essa jornada, eu me pergunto como Polanski não foi capaz de se colocar no ponto de vista que tanto evidenciou em seu filme.
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Daniel Filipe
Mestrando em Comunicação e formado em Cinema e Audiovisual. Está sempre vendo filmes e buscando outros pra ver. Gosta de música com voz e violão e também de tomar café no fim da tarde. Acha que essas coisas podem fazer do mundo um lugar melhor.
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