RESENHA | Objetos Cortantes, de Gillian Flynn

Objetos cortantes é um livro de suspense violento e feminino.
Camille Preaker é uma repórter de um jornal insignificante de Chicago e retorna a sua pequeníssima cidade natal no interior do interior do Missouri para cobrir a investigação sobre o assassinato de duas garotinhas e uma possível ligação entre os dois crimes. Apesar de não querer voltar para Wind Gap, Camille é rapidamente convencida por seu editor-chefe que a matéria pode alavancar sua carreira e a popularidade do jornal. Entendemos com o passar do tempo, no entanto, que aceitar fazer essa viagem é só a primeira de muitas atitudes auto-destrutivas que a protagonista vai tomar durante a narrativa – e que já tomou ao longo de sua vida.
Logo descobrimos que Camille saiu recentemente de um hospital psiquiátrico onde foi tratada por se auto-infligir cortes na pele. Ela tem todo o corpo marcado por palavras-cicatrizes, salvando-se apenas as mãos e o rosto. O retorno à cidade e a investigação dos assassinatos vão trazendo de volta todos os gatilhos para as crises, fazendo com que as palavras-cicatrizes em sua pele gritem e sua cabeça fique cada vez mais confusa.
Por ser em primeira pessoa, a narração do livro segue a derrocada psicológica da protagonista. Começamos com uma narrativa de certo modo objetiva e caminhamos para se tornar cada vez mais subjetiva, quase um fluxo de consciência. Além disso, Gillian Flynn se utiliza disso, de só termos a perspectiva de Camille, para resolver o mistério principal a conta-gotas aumentando a tensão de tal forma que, em certa parte do livro, seus olhos ficam querendo pescar as palavras do próximo parágrafo. Assim também nos é revelado aos poucos as atrocidades que se escondem nas salas de estar das poucas e perfeitas famílias residentes de Wind Gap.
Apesar de o livro ir se tornando uma narrativa psicológica, a forma como a autora escreve é bastante visual, no sentido de formar imagens em movimento na sua cabeça. É possível visualizar a cena acontecendo, a movimentação das personagens, até certos enquadramentos. Não é à toa que dos quatro romances que a autora escreveu, dois foram adaptados para o cinema (Lugares Escuros e Garota Exemplar) e Objetos Cortantes acabou de ser adaptado para série limitada de TV pela HBO.
Voltando às atrocidades, a autora escreve sobre pessoas ordinárias em suas vidas aparentemente ordinárias. Não parece haver nada de especial sobre elas. A violência surge como as cicatrizes sob as blusas de manga comprida de Camille: ela está em toda parte, só precisamos chegar perto o suficiente para ver. Gillian Flynn nos oferece uma tese aqui de que a natureza feminina é vil. Poucas personagens são descritas como boas ou gentis. A maioria tem suas ações ligadas a interesses pessoais ou a uma pulsão de violência. A crueldade pode aparecer a qualquer momento e vindo de qualquer uma.
Isso é o mais interessante sobre esse livro e também o mais problemático. A autora traz mulheres como personagens que podem gostar de violência e que podem provocar atos de violência. Quando se trata desse assunto, as mulheres são retratadas na periferia dos acontecimentos (são irmãs, mães, tias, namoradas) ou são vítimas das situações, elas raramente são os vetores, principalmente quando falamos de violência física. Gillian Flyn nos mostra aqui como as garotas podem ser cruéis – e como atos do cotidiano podem ser atos de violência: humilhar sua irmã mais velha na frente de suas amigas, subjugar uma de suas amigas por ser a “menos atraente”. Assim como também podemos chegar a arrancar um pedaço da orelha de alguém com os próprios dentes, matar o pássaro do vizinho, furar os olhos de uma colega de classe no meio de uma briga.
Por outro lado, a autora só mostra as garotas e as mulheres sendo más umas com as outras. Todas as relações de Camille com personagens femininas – e da maioria das personagens – tem algum grau de toxicidade. Seja o seu relacionamento mais espinhoso (com sua mãe) ou um breve contato com uma antiga colega de escola. Quando na presença de mulheres, Camille nunca está completamente confortável e sempre há um quê de maldade nas palavras ditas ou nas pensadas. Tenho ciência de que algumas dessas relações são tóxicas na medida certa, que são relações complexas, porém se pensarmos que as principais relações da protagonista com figuras masculinas não são tóxicas, isso pesa. Ainda mais quando percebemos que todas as vezes que Camille precisa fugir, ela liga para um homem (o policial), personagem com quem ela mais se sente à vontade na cidade; e que quando ela está em apuros, sempre recorre a um outro homem (seu editor-chefe), que inclusive é com quem ela tem uma relação quase de família. Existe em alguns momentos do livro, uma clara polarização, onde as mulheres são cruéis e os homens são inocentes.
O livro, com a vontade de fazer diferente, na verdade reitera certos papéis de gênero: as meninas são cruéis, mas só são cruéis umas com as outras. Elas têm capacidade de cometer atos de violência, mas só se for para destruir outras mulheres. As garotas não têm capacidade de ser gentis ou solidárias com outras garotas. E quando são, acabam se dando mal. Não é possível para uma mulher confiar em outra. Os homens são meros espectadores da carnificina que promovemos contra nós mesmas, enquanto para eles, tudo continua igual.