Ultimamente tenho tentado quitar uma dívida antiga que tenho como apaixonado por cinema: Assistir a clássicos do faroeste que ainda não tinha visto (claro que o gênero ser tema da minha monografia é um ótimo incentivo), e entre grandes obras de John Ford como Paixão dos Fortes (My Darling Clementine, 1946) e O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962) ou o grandioso Duelo ao Sol (Duel in the Sun, 1946) de King Vidor, me deparei com dois filmes menos conhecidos do gênero, mas que me encantaram por sua peculiaridade em relação a outros filmes da época, são eles Consciências Mortas (The Ox-Bow Incident, 1943) e Céu Amarelo (Yellow Sky, 1948), ambos dirigidos por William A. Wellman.
Geralmente quando se pensa em faroeste, ou western, especialmente se tratando dos filmes mais antigos deste gênero, que permeia o cinema desde seus primórdios, costuma-se imaginar os clichês que o fizeram famoso: cowboys perseguindo foras-da-lei e salvando mocinhas em perigo das mãos de selvagens impiedosos, ladrões de banco tocando o terror em cidades cortadas por uma única via de passagem, etc. E, de fato, estas são características bastante recorrentes destes filmes, tanto que muitas delas estão presentes em seu maior representante, o épico No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939) de John Ford, filme que consagrou John Weyne como ícone absoluto do faroeste. No entanto, como um dos gêneros mais clássicos do cinema, existem filmes que exploram e subvertem estas características, às vezes de forma mais sutil às vezes mais escancaradamente. Estes dois filmes de Wellman que citei são dois exemplos peculiares.
Ambos os filmes iniciam de maneira estranhamente similares. Homens chegam a uma pequena cidade (dessas em que vemos em quase todo faroeste), entram no saloon (parece, inclusive ser o mesmo local nos dois filmes), encostam no balcão e admiram uma pintura na parede, refletindo sobre seu significado ou simplesmente fazendo piadas sobre o que nelas está representado. Posso estar equivocado, mas é possível que Wellman esteja ali nos dizendo que estes não são filmes de faroeste como qualquer outro, que assistiremos apenas para ver alguns tiroteios ou perseguições à cavalo, mas são filmes que nos farão pensar sobre eles e as situações que trazem em seu enredo. Mas não se engane, nenhum dos dois filmes têm o enredo extremamente complicado, cheio de camadas, onde existe uma mensagem nas entrelinhas, pelo contrário, são muito claros no que querem falar, e sua mensagem está inserida de forma bastante sutil entre os vários clichês que fazem o gênero.
Os personagens de Henry Fonda e Dana Andrews observam a pintura em “Consciências Mortas” |
O bando de ladrões liderados por Stretch (Gregory Peck) observam e refletem sobre a pintura na parede em “Céu Amarelo” |
Baseado no livro de mesmo nome de 1940 escrito por Walter Van Tilburg Clark, Consciências Mortas não está interessado em criar um herói clássico ou em um romance entre um rancheiro e uma inocente dama, mas aborda uma moralidade (ou a falta dela) presente ali, naquele longínquo século XIX, mas também hoje em dia, e em qualquer sociedade humana. O filme nos trás Henry Fonda (outro ator clássico dos filmes de faroeste) no papel de um homem que volta à cidade após muitos anos, em busca de uma dama que havia prometido o esperar, mas, quando achamos que o filme está caminhando para um lado mais tradicional, eis que o protagonista se depara com uma situação inusitada, que será o mote de todo o filme. Um fazendeiro querido por todos na cidade é assassinado por um grupo de bandidos e, na ausência de um xerife na cidade e na presença de um juíz com pouca moral, vários habitantes se reúnem em um grupo para perseguir e linchar os malfeitores. No processo de fazer justiça com as próprias mãos os vários personagens se confrontam com suas próprias consciências, chegando à vários impasses, além de terem que lidar com seus próprios problemas, como o caso do pai que insiste em tornar o filho um homem “corajoso” forçando-o a fazer parte do conflito quando este se mostra contrário a toda aquela situação. O filme é repleto de diálogos fortes, contrastando com o silêncio cortado por tiros que permeia a maioria dos filmes deste gênero.
Céu Amarelo é baseado no romance de W. R. Burnett e fala sobre um grupo de bandidos que após assaltarem o banco de uma cidade fogem da cavalaria do exército e para isso precisam atravessar um extenso deserto, ficando assim quase mortos de sede e de cansaço. Até que o grupo avista uma cidade ao longe, mas logo percebem que a mesma está abandonada (a clássica cidade fantasma inspirada nos lugarejos que cresciam durante a Corrida do Ouro e logo ficavam desabitados após as jazidas do metal se esvaírem). No entanto são surpreendidos por uma linda jovem (Anne Baxter) que tenta expulsá-los do lugar. Logo, os homens desconfiam de uma mulher vivendo sozinha com seu avô (James Barton) em um lugar como aquele e desconfiam que os dois estão escondendo algum tesouro. Aqui temos mais um ator clássico do faroeste como protagonista, desta vez se trata de Gregory Peck, que neste filme encarna o perfeito anti-herói do western, que mesmo sendo um bandido e se mostrando egoísta e rude, ainda apresenta um sentido de honra e cavalheirismo que o torna admirável. Novamente temos um grupo que entra em conflito entre si para resolver um impasse, e mesmo que no final tudo se resolva com uma troca de tiros o caminho que seguimos até lá é permeado de reflexões, e é curioso como Wellman e seu roteirista Lamar Trotti (o mesmo em ambos os filmes) usa do faroeste para tratar um tema tabu da sociedade americana, neste caso, os traumas psicológicos de jovens que retornam da guerra.
É interessante ressaltar o contexto histórico em que os dois filmes foram produzidos, o primeiro durante os eventos da Segunda Grande Guerra, conflito que espantou o mundo em vista de seu alcance e grandiosidade e fez todos refletirem sobre as relações humanas em maior ou menor grau, e o outro três anos após o seu fim, em 1945, quando o mundo ainda estava tentando se recuperar do baque. Mais impressionante ainda é pensar como filmes feitos há mais de 70 anos (no caso, Céu Amarelo completa 70 este ano) e mesmo em um gênero com tantos clichês e que parece tão superficial, podem ainda ser tão atuais e falarem sobre temas tão pertinentes ainda hoje.
Filmes como os da dupla Wellman e Trotti nos mostram que até um gênero tão pautado em clichês como é o caso do faroeste pode se reinventar e, de uma forma ou de outra, não serem superficiais em suas abordagens. Servem para nos tirar alguns preconceitos sobre o cinema comercial Hollywoodiano e perceber que até o mais convencional dos gêneros pode nos fazer refletir sobre questões pertinentes, sem, claro, deixar de divertir o espectador.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.