Mudbound, Marshall e Strong Island – Representatividade negra no Oscar 2018

Nunca é demais falar sobre racismo. Nunca é demais lembrar para algumas pessoas que ele existe SIM! Eu disse “algumas pessoas” porque para quem sofre com os absurdos do racismo diariamente é impossível esquecer que ele está lá, a todo momento, nem sempre com palavras, mas muitas vezes com um olhar, com um atravessar de calçada, às vezes com uma ação “involuntária”, mas ele SEMPRE está lá, quase institucionalizado, como algo tão comum, tão corriqueiro, que em alguns momentos somos levados a achar que ele é “normal”.

Felizmente o cinema sempre insiste neste tema, de uma forma ou outra. E não vou entrar na discussão mercadológica sobre lucrar em cima disso mas, querendo ou não, muitos desses filmes cutucam o expectador para uma reflexão, ou para usar um jargão, “uma tomada de consciência”. Isso pode ser passageiro para alguns, mas já vi filmes como Homens de Honra (Men of Honor, 2000) fazer um grupo de adolescentes, entre brancos e negros, conversarem sobre o assunto em uma época que racismo ainda era tido como um tema tabu. Então é impossível dizer que eles não prestam um papel importante, e em uma época em que a representatividade negra no cinema Hollywoodiano tem ganhado cada vez mais espaço e visibilidade, vide Pantera Negra (Black Panther, 2018), nada mais natural do que aparecerem cada vez mais produções envolvendo esta temática. E isto é ótimo, não é mesmo?
Mary J. Blige indicada a melhor atriz coadjuvante em 2018 e a diretora e roteirista Dee Rees indicada por roteiro adaptado, ambas de Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi
Desde 2016 algumas mudanças foram vistas nas indicações ao Oscar e consequentemente na indústria cinematográfica como um todo. Mudanças ainda moderadas, mas ainda assim significativas. Isto porque naquele ano com os indicados às categorias de atuação e direção tivemos um número absoluto de pessoas caucasianas, gerando o movimento #OscarSoWhite (Oscar tão Branco) com adesão de grandes nomes como Will Smith e Spike Lee, que não estiveram presentes na premiação em protesto a falta de diversidade e a insensibilidade da Academia. A entidade então logo se pronunciou anunciando mudanças para que aquilo não mais ocorresse, o que contribuiu para, no ano seguinte, termos um filme como Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016), de uma produtora independente e diretor estreante, não só ser indicado, como vencer na categoria de melhor filme do ano, além de melhor roteiro adaptado e ator coadjuvante para Mahershala Ali.
O que nos trás ao Oscar de 2018. Este ano podemos apontar pelo menos quatro indicados que tratam de alguma forma sobre preconceito racial. O mais destacado deles certamente é Corra! (Get Out, 2017), com indicações à melhor direção e roteiro original para Jordan Peele, melhor ator para Daniel Kaluuya e melhor filme. Mas como já discutimos sobre ele neste ótimo texto decidi que poderia unir os outros três filmes em um único texto, pois acho que a interação entre eles e o fato de terem espaço na premiação pode gerar uma boa reflexão. São eles Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi (Mudbound, 2017), Marshall (2017) e o documentário Strong Island (2017), três filmes simples e que tratam o racismo de formas distintas, mas que podem igualmente nos levar a pensar sobre o tema e como ele é tratado no cinema e na sociedade como um todo.
Mudbound foi indicado em quatro categorias: melhor canção original para “Mighty River” interpretada por  Mary J. Blige que também concorre como melhor atriz coadjuvante, melhor fotografia para Rachel Morrison – que também conduziu belamente a mesma função em Pantera Negra – primeira mulher indicada nesta categoria (!), e melhor roteiro adaptado para Dee Rees, primeira mulher negra indicada nesta categoria (!) e também diretora do longa. Apenas isto já é motivo para comemoração e para dizermos mais uma vez para os integrantes da Academia “não fizeram mais do que sua obrigação”. Mas fora isso é difícil dizer que gostei realmente do que vi.
O filme é inspirado no romance de mesmo nome escrito por Hillary Jordan e conta sobre duas famílias no sul dos EUA que, nos anos 1950, vivem na mesma fazenda, mas separadas pela enorme barreira de segregação e preconceito racial que permeou e ainda permeia aquela região do país. A rotina das duas famílias se transforma completamente quando cada uma delas tem um de seus membros retornando da Segunda Grande Guerra após o fim do confronto, e ambos os jovens quanto as famílias precisam lidar com as consequências disto, e mais ainda quando os dois criam um improvável laço de amizade, desafiando as “regras” impostas por aquela sociedade. O filme tinha muitas chances de gerar uma boa história, mas perde esta oportunidade principalmente por não conseguir desenvolver e aprofundar seus personagens e o que poderia ser uma relação tão complexa e interessante como a amizade entre os dois jovens, assim como das famílias entre si, acaba sendo tratada de forma demasiadamente simplificada e rasa. Quase nunca conseguimos nos identificar com as personagens nem mesmo em suas maiores dificuldades, o que não é uma tarefa difícil quando estamos falando de um filme que trata sobre uma temática social tão potente como é o racismo. Além do mais, o roteiro tenta abranger outros temas delicados como a ressocialização dos soldados após a guerra ou mesmo sobre o lugar da mulher naquelas duas famílias, mas por falta de espaço e um melhor desenvolvimento acabam ficando deslocados dentro do filme.
O filme faz um esforço tremendo em criar uma dramaticidade, com frases de efeito como “não faz sentido lutar, eles sempre vencerão”, mas é a forma que Dee Rees escolheu para conduzir a narrativa o que mais a prejudica. Todo o filme é guiado por uma narração quase incessante, dando voz a vários personagens, servindo apenas para que nos possa ser explicado um sentimento que o filme não consegue passar em suas belas imagens, chegando até mesmo ao absurdo de narrar exatamente o que estamos vendo na tela.
Marshall, indicado apenas na categoria de melhor canção original com “Stand Up for Something” de Diane Warren e Common, é passado praticamente na mesma época em que Mudbound, com uma diferença de poucos anos já que no primeiro estamos no início da Segunda Guerra enquanto no outro ela já está em seu fim. Neste filme vemos a história inspirada em um caso real em que o advogado Thurgood Marshall (Chadwick Boseman) precisa defender um homem negro acusado de estuprar sua patroa, uma mulher branca da alta sociedade. Marshall ficou depois conhecido por ser o primeiro juiz afro-americano da Suprema Corte dos Estados Unidos.

 

Diferente de Mudbound, temos um filme que se passa no norte do país, região tida como mais progressista, mas que mantinha e, claro, ainda mantem, um racismo intricado em sua cultura, disfarçado por uma cortina de hipocrisia, velado, mas, assim como no sul, tão latente quanto possível. O filme se encaixa no gênero “tribunal” e nisso acaba por fazer bem sua função, de forma simples e sem muitos rodeios, tornando-se até mesmo divertido – mesmo tratando de um tema tão sério – com um humor que está na maioria das vezes na relação entre Marshall e Friedman (Josh Gad), outra amizade improvável entre um negro e um branco. E acho que é exatamente por não se levar tanto a sério, o que podemos notar com a simpática trilha musical do filme, que acaba tendo uma efetividade maior, e mesmo que não haja também aqui um aprofundamento tão grande dos personagens conseguimos ter um mínimo de identificação com eles. A simplicidade com que o racismo é aqui tomado, no jogo jurídico em que os personagens se envolvem, pode facilmente se confundir com falta de profundidade, mas consegue levantar questões complexas em seu íntimo, como quando o réu Joseph Spell (Sterling K. Brown) pensa em aceitar um acordo e ficar preso por muitos anos mesmo tendo a convicção de que é inocente, pois sabe que até mesmo uma relação consensual entre ele e sua patroa, mesmo que permitida pela lei, seria violentamente reprovada pela sociedade – o que sabemos que, por mais impossível que possa parecer, é algo que ainda reverbera nos tempos atuais.

 

 

Por último temos o indicado a melhor documentário Strong Island, que marca a estreia na direção de Yance Ford. No filme, Ford se volta para sua própria intimidade e a de sua família ao retornar para os eventos que levaram ao assassinato de seu irmão na década de 1990. Apesar do estilo tradicional com entrevistas e fotografias, o documentário apresenta imensa sensibilidade e delicadeza e a cada pausa das falas da mãe, da irmã mais nova e do melhor amigo da vítima sentimos não como uma lentidão prejudicial ao ritmo do filme, mas como uma necessidade que nós como espectadores também sentimos, quase como se a história estivesse presa na garganta, como um grito que quis sair, mas nunca foi dado. Uma história que, infelizmente, sabemos ser corriqueira, e que cada vez mais, com o alargamento da discussão sobre o porte de armas, tanto nos EUA como no Brasil (e é um absurdo que algo assim ainda precise ser discutido), torna-se ainda mais necessária.

 

Assim como em Marshall, o filme segue por vias do sistema judiciário americano e da relação deste com pessoas afro-descendentes, e lamentavelmente, mesmo com uma diferença cronológica de décadas é difícil ver grandes avanços. Mas diferente da ficção este documentário não tenta resolver o caso e deixar tudo às limpas, mas segue por um outro caminho, mais doloroso e menos empolgante, pois acompanhamos a dor de uma família que jamais deixará de sofrer com uma injustiça. A sequência rápida em que temos uma câmera de cabeça para baixo em movimento pelas ruas é simples, mas incrível ao mesmo tempo, pois é como se estivéssemos sem ter onde pisar, sem chão, como se nada estivesse certo, nos sentimos como aquela família.
A presença destes filmes no Oscar deste ano, mesmo que com pouco destaque e com seus defeitos, ainda nos dá um pouco de esperança. Esperança de mudança e de que este assunto esteja mais e mais sob os holofotes, para que pensemos sobre ele, conversemos, levantemos questões. Se nos anos 2000 Homens de Honra já criava uma fagulha, imaginem a fogueira que Pantera Negra e Corra! não podem acender.