Donald Glover, Childish Gambino e caras estranhos

Donald Glover talvez seja um dos artistas mais versáteis nos últimos anos, é um ator, roteirista, comediante, diretor e produtor que chama atenção desde que surgiu em Community (2009 – 2015) como o irreverente Troy, mas que antes disso já era conhecido por ser um dos redatores do excelente seriado 30 Rock (2006 – 2013). Sempre mostrou sua versatilidade na variedade de seus trabalhos: comediante de stand-up, dublador do Miles Morales – versão alternativa do Homem-Aranha onde o herói é um adolescente negro – na recente animação Ultimate Homem-Aranha (2012 – 2017), interpretou Aaron Davis: o tio de Miles Morales em Homem Aranha: De volta ao lar (Spider-Man: Homecoming, 2017), esteve em filmes como Perdido emMarte (The Martian, 2015), Renascida do Inferno (The Lazarus Effect, 2015) e até mesmo Magic Mike XXL (2015), onde não só dança mas também solta a voz. Glover foi escalado para viver o malandro e carismático Lando Calrissian em Han Solo: Uma História Star Wars (Solo: A Star Wars Story, 2018)  e a dar vida e voz a Simba no aguardado remake de O Rei Leão (The Lion King, 2019), mas onde toda essa versatilidade pode ser realmente observada é em seu maior trabalho até hoje: Atlanta (2016 -).
A série  tem um clima estranho, a multipremiada produção da FX foi escrita, dirigida, produzida e protagonizada por Donald Glover e é uma série difícil de categorizar; Earnest “Earn” Marks (Donald Glover) sai da faculdade e decide se tornar agente de seu primo Alfred “Paper Boi” Miles (Bryan Tire Henry) enquanto tem que lidar com Darius (Keith Stanfield) sócio de seu primo e tenta arrumar seu relacionamento com Vanessa Keefer (Zazie Beetz) com quem tem uma filha. É com essa premissa aparentemente simples que a série vai ganhando mais camadas a cada episódio que você assiste, ela fala sobre tanta coisa e de tantas formas usando de um humor que vai do sútil ao escrachado, de situação realista a absurda e tudo isso sem deixar de ser afiado entre a piada e a crítica social, como se fosse uma obra de Douglas Adams nascida na periferia norte americana.
Childish Gambino talvez seja um dos músicos mais versáteis dos últimos anos, é um rapper, cantor, compositor, produtor musical, DJ e multi instrumentista que chama atenção desde que surgiu com seu primeiro álbum “Camp”, mas que antes já era conhecido no cenário underground por suas mixtapes, sempre mostrou sua versatilidade na variedade de seus trabalhos: das rimas agressivas de “Bonfire” passando pela melódica e cativante “Sober” presente no álbum ‘Kauai’, seu cover de “So into you” da Tamia (o qual ele cantou sem alterar o eu lírico feminino), a música que improvisou no programa The Late Late Show With James Corben (2015 -) acompanhado de Roger Watts até seus inúmeros freestyles (raps de improviso) em diversas rádios, mas onde toda essa versatilidade pode ser observada é em seu trabalho mais ambicioso até hoje: o disco “Awaken, My Love!
O disco tem uma sonoridade estranha; concorrendo a 5 categorias no grammy deste ano incluindo álbum do ano, Childish Gambino assina como cantor, compositor e co-produtor em parceria de Ludwig Göransson. É um disco dificil de categorizar; oficialmente ele está no gênero R&B/Soul mas a cada faixa mais camadas e gêneros vão aparecendo, desta vez ele deixa as rimas um pouco de lado e o disco é todo cantado melodicamente, porém com tanta sonoridade e é produzido de tal forma que vai do Funk psicodélico de George Clinton, até a faixas mais sensuais do disco – incluindo “Redbone“, maior sucesso comercial do cantor e presente no filme Corra! (Get Out, 2017) – que lembra o estilo e sonoridade de Prince, e tudo isso sem deixar de ser afiado como por exemplo na faixa “Zombies” onde fala sobre os “zumbis” da indústria musical, como se fosse um disco do Mark Ronson se ele fosse negro.
E o mais impressionante é que eu estou falando sobre a mesma pessoa.
Donald McKinley Glover a.k.a. Childish Gambino – codinome que ele alega ter escolhido num site de “descubra seu nome de rapper” – definitivamente é um cara estranho; negro e nerd, ele subverte os estereótipos dos dois nichos principais em que circula. Formado em escrita dramática na New York University’s Tisch School of the Arts ele alega ter sido influenciado tanto por LCD Soundsystem quanto por Ghostface Killah e isso fica claro em seus trabalhos. Glover usa referências da cultura pop em suas músicas e referências de hip-hop em suas produções áudio-visuais sem que pareça forçado, tudo flui tão natural que às vezes até acaba passando despercebido.
Minha experiência pessoal com o trabalho dele é uma história curiosa, lá pro final de 2012 ou começo de 2013 eu já conhecia a série Community quando muitos dos meus conhecidos da época começaram a falar sobre um tal de Childish Gambino e seu disco “Camp”, fui atrás de ouvir e acabou virando uma das paradas que eu mais dei play naquele ano , eu sempre tive essa mania de escutar coisas e não procurar a cara das pessoas, tem muito podcastque eu ouço há anos e mesmo assim não faço a menor ideia de como é a aparência dos participantes. Então, só depois de quase um ano ouvindo Childish Gambino que por acaso vi uma matéria sobre ele num site e minha cabeça explodiu. Foi o meu núcleo da cultura pop se chocando com o núcleo do hip hop. É uma das coisas com que faz que eu me identifique muito com ele, a cultura do hip hop, na verdade a cultura negra em geral, não costuma conversar muito com a cultura pop – a não ser quando mudam a etnia de algum personagem de quadrinhos que ninguém conhecia a 5 minutos atrás e todo mundo fica maluco por causa disso – são nichos muito distantes e o meio do rap é conhecido por ter muita gente conservadora.
Por muito tempo eu vivi “no armário” porque pra muitos parece estranho um cara como eu jogando basquete com uma camisa de Star Wars ou jogando RPG de mesa e usando Wu-Tang Clan na aventura. Vamos concordar também que aquele subgênero que chamam de Nerdcore quase 99% das vezes dá vergonha alheia de ouvir, então eu tinha medo de expor meus gostos por cultura pop e ser de alguma forma rejeitado mas quando eu conheci o Donald Gambino foi um alívio, um tipo de libertação mesmo e descobri que tinha mais gente presa nesse limbo cultural comigo, claro que tem gente que ainda acha estranho, mas se o Donald Glover/Childish Gambino pode dizer em alto em bom som “I’m the nerdiest rapper ever” (eu sou o rapper mais nerd que já existiu) e ser respeitado, o mínimo que posso fazer é seguir o baile. E não, ele não é parente do Danny Glover.
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Hugo dos Santos, o Ugu.
Metralhadora de provocações, rimas e de histórias que começam sempre com “eu tenho um amigo…”. “Ugu” divide seu tempo entre jogar basquete e questionar o sistema. Tem um crush nada secreto no Donald Glover. Veio a esse mundo mascar chiclete e desmascarar galãs feios. E seu chiclete acabou.