O Formidável – o quão escroto e gênio foi Godard

Em 1967 o cineasta francês Jean-Luc Godard, no auge de seus 37 anos e já considerado um dos mais importantes de sua geração, finaliza um filme que seria divisor de águas em sua filmografia. Trata-se de A Chinesa (La Chinoise, 1967), um filme com um viés claramente político tanto em sua estrutura, e ainda mais em seu conteúdo, que conta sobre um grupo de jovens parisienses favoráveis aos preceitos do Maoismo, debatendo, estudando, trocando ideias. Um filme cheio de significados e metáforas, com diálogos e falas bastante simbólicas, que apesar de falar muito de sua época continua ainda forte e necessário. Enquanto filmava Godard acabou se envolvendo com uma das atrizes, a alemã Anne Wiazemsky, com quem se casaria logo depois. Este é o ponto de partida de O Formidável (Le Redoutable, 2017), inspirado na autobiografia de Wiazemsky, Un an Après de 2015, dirigido e roteirizado por Michel Hazanavicius, vencedor do Oscar por O Artista (The Artist, 2011) e que mais uma vez busca retratar de forma leve e bem-humorada uma parte importante da História do Cinema.
O diretor mais uma vez se mostra bastante inteligente em brincar com a própria linguagem do filme para abordar a temática em questão. Enquanto em O Artista Hazanavicius faz um filme mudo e em preto e branco para falar sobre a transição para o cinema falado (ideia que executa de forma um tanto quanto elegante), em O Formidável o diretor a todo momento faz, na execução do próprio filme, inúmeras referências ao modus operandi difundido por Godard, Truffaut e seus companheiros da Nouvelle Vague, e utiliza isto inteligentemente como contribuição para a comicidade do filme, como quando Godard (interpretado impecavelmente por Louis Garrel) fala sobre o fetiche de alguns diretores em mostrar atores pelados em tela enquanto ele mesmo e Anne (Stacy Martin) aparecem em nu frontal de corpo inteiro, ou quando o cineasta simula um tiro em sua própria cabeça com uma câmera de mão, enquanto ouvimos um estampido alto. Mas em nenhum momento estas brincadeiras se apresentam de forma depreciativa, pelo contrário, são claramente homenagens bem-humoradas à vanguarda francesa.

Por outro lado, apesar de reverenciar a obra de Godard, o filme não exita em apresentar o quão difícil de se lidar (e isso é um eufemismo) era o cineasta, ainda mais em um momento em que suas ideias políticas, muitas vezes contraditórias, estavam cada vez mais à flor da pele, já que um ano após a estreia de A Chinesa aconteceria em Paris uma das manifestações políticas mais importantes do século XX, uma greve geral iniciada por estudantes e que ficou conhecida como Maio de 68, mesmo movimento retratado em Os Sonhadores (The Dreamers, 2003) de Bertolucci e também estrelado por Garrel. Godard participa intensamente das manifestações e no filme vemos como seus desejos políticos se tornam cada vez mais intensos refletindo não só em seus filmes, mas também na sua carreira e em sua vida de modo geral. O gênio de Godard (com o perdão do trocadilho não proposital) apresenta-se cada vez mais niilista e destrutivo, o que gera algumas das sequências mais divertidas do longa, como o debate/coletiva de imprensa em um festival onde lança seu novo filme, ou na hilária sequência onde debate com seus amigos em um apertada viagem de automóvel voltando do Festival de Cannes de 1968.

Enquanto isso acompanhamos a relação conturbada entre Anne e o cineasta tornando-se cada vez mais insustentável já que a atriz vê o criativo e animado vanguardista de Acossado (À Bout de Souffle, 1960) e O Desprezo (Le Mépris, 1963) que ela tanto admirava transformar-se em um ser tão pessimista, renegando até mesmo sua própria filmografia e qualquer outra forma de cinema que não esteja engajada à revolução, levando-o, junto com seu amigo Jean Pierre Gorin, à criação do coletivo Dziga Vertov em fins de 68.

O Formidável nos trás, assim, um divertido retrato da transformação de um dos mais influentes cineastas de todos os tempos (a quem alguns chamam de gênio, o que de certa forma não é um grande exagero), e que até hoje, quase chegando à sua nona década de vida, parece ser viciado em transformações e renovações.