O passado e a crueldade: “A Filha Perdida”, de Elena Ferrante

Eu tenho uma coisa com personagens que são pessoas ruins. Ou melhor, pessoas ruins que, mesmo que tenham alguma forma de redenção ou remorso por seus atos falhos não esquecem que são pessoas ruins. Eu posso ter um pouco de ressentimento por esses personagens, mas eu sou extremamente cativado por eles, se forem bem trabalhados.
Em minha primeira experiência com Elena Ferrante, o que encontrei foi justamente isso: personagens muito complexos, cheio de camadas e falhas pessoais, e que em momento algum escondem isso. Leda, a protagonista e narradora da história, se diz uma mãe desnaturada, sem hesitação. Ela não poupa nada, nenhum pensamento ou memória, por mais densa e mórbida que ela seja. A sua própria crueldade que surge a partir de seu egocentrismo latente é um dos elementos que são dissecados no decorrer da leitura, através dessas próprias lembranças de um passado não muito honroso. Junto à essas memórias, a culpa, o remorso e a dificuldade de dar nome aos próprios sentimentos e desejos são o que movem toda a meditação de Leda, assim como as narrativas dos outros personagens.
Leda, uma professora universitária de meia-idade, é tomada por um estranho alívio após suas duas filhas — já formadas — irem morar no Canadá com o pai, decide tirar férias na região da Toscana. Logo quando se inicia sua rotina de ir à praia todos os dias, ela fica intrigada com uma barulhenta família napolitana, mas mais especificamente com Nina. Nina é mãe de Elena, uma garotinha que ama sua boneca, e parece bastante a vontade. Apesar de sua família ruidosa e imperativa, Nina parece calma e centrada no seu papel como mãe, o que faz com que Leda lembre de sua juventude, e de como se tornou mãe. Leda, então, começa a querer se aproximar de Nina, mas quanto mais Leda se envolve, mais fantasmas do passado ressurgem e ela se vê em meio à uma encruzilhada de sentimentos, memórias e escolhas realizadas.
Apesar do tamanho do livro, em suas poucas 176 páginas, Elena Ferrante — figura que causou muito alvoroço no mercado editorial por não revelar sua identidade, mas isso é assunto pra outro texto — consegue costurar uma ampla trama que transita entre o passado e o presente da protagonista, com personagens muito singulares que parecem ter vida própria diante das páginas. São grossos, rudes, emotivos e cada um com suas motivações pessoais, mesmo que não estejam nem perto de serem protagonistas. Talvez, até, sejam os personagens mais humanos que conheci na ficção.
É uma precisa e cruel meditação sobre as variações do que é ser mãe. Toda mãe um dia já foi filha. E todas essas mulheres mostram as nuances desses dois substantivos.
 
 
Título Original: Storia della bambina perduta
Nº de Páginas: 176
Editora: Instrínseca
Ano: 2016
ISBN: 9788551000328