Uma Viagem de 20 anos com Trainspotting

Hoje, dia 16 de agosto, completa-se 20 anos do lançamento de Trainspotting – Sem limites (Trainspottin, 1996). A obra do diretor britânico Danny Boyle chocou o mundo com um retrato realista, violento e com um certo toque de humor (nada convencional) sobre o mundo das drogas.
Em maio deste ano, foi lançado o teaser da tão aguardada continuação da obra de 1996. Nela, anuncia-se a presença do elenco original, além do diretor e data de estreia (27/01/2017). E aí? Será que teremos uma continuação a altura do original? O que sabemos é que o roteiro é baseado no livro Pornô”, uma sequência de Trainspotting também escrita por Irvine Welsh. E só; o resto é especulação.

Enquanto o filme não chega, vamos deixar essa notícia no meio do caminho e pegar um trem até os anos 90 para entendermos a importância do filme no contexto da época. “Bora viajar?”

A década mais plugada foi marcada pela intensificação do capitalismo globalizado – época das privatizações, do mercado internacionalizado e o Estado Mínimo (representado pela redução dos gastos públicos). São “tempos prósperos”, pelo menos para os otimistas das classes sociais mais abastadas.
A juventude se apresenta cada vez mais individualista, ávida pelo consumismo, cheias de desesperança e sonhos perdidos. Temas como drogas, sexo, violência e desemprego se misturavam no cotidiano do jovem como se fossem novas bandas de rock e peças de propagandas publicitárias. Mais do que nunca a cultura pop lucra com o aumento do consumo individual dessa juventude. Consumir é preciso, viver não é preciso (?). No comercial dos cigarros Free, dizia-se “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”. Se havia algo em comum entre os jovens dessa época era justamente ser diferente dos outros. “Ser diferente é ser normal” – expressão personificada pelo maior ícone dos jovens daquela época, Kurt Cobain, o atormentado jovem líder da banda de rock Nirvana, que cometeu suicídio em 1994 – E muitos jovens seguiram esta máxima; através das roupas, expressões e atitudes.
No meio de tudo isso, estava eu que não tinha a menor noção do que foi descrito acima. Um jovem recém-saído do 2º grau (!), tímido, careta. Só queria saber de jogar bola, ouvir música no rádio, assistir filmes na TV ou no cinema quando a grana do reforço escolar sobrava, não tinha a menor ideia do que iria acontecer com meu futuro e senti a morte do Renato Russo. Foi nessa época que me encontrei com o filme. Antigo Cine Fortaleza no Centro de Fortaleza (logicamente). Assisti aquilo atônito. Era muita informação para alguém que se gabava por assistir muito filme na Sessão da Tarde. Paixão à primeira sessão! O tempo passou, veio o VHS alugado (olha que era raro encontra-lo para alugar), Ewan MacGregor virou jedi, Boyle ficou milionário na Índia e passei a buscar entender o porquê daquele filme marcar tanto uma geração. A viagem continua!
Vários diretores de cinema estrearam nesta época e souberam representar o universo jovem dos anos 90 em produções cinematográficas. É o caso de Boyle, que ao longo de sua carreira mostrou mais versatilidade do que autoria. Em seus primeiros filmes, o diretor apresentou uma câmera nervosa, violência explícita, tensão constante e personagens com ímpetos autodestrutivos. Ingredientes bem marcantes no seu segundo longa, Trainspotting. Produção britânica que mistura comédia (melhor seria dizer, uma comédia britânica bem ácida) com toques de drama num roteiro baseado no livro homônimo do escritor Irvine Welsh sobre quatro jovens escoceses da classe baixa de Edimburgo, viciados em heroína e sem muitas expectativas em relação à vida, a não ser que seja saber quando terão a próxima picada.

 

 

A obra não deixa de ser um retrato da subcultura jovem britânica, que sofria, há tempos, com o desmantelamento do bem-estar social realizado pela primeira-ministra Margaret Thatcher. Jovens sem um sentido na vida e falta do que fazer diante de um mundo de portas fechadas. É sobre isto que o título do filme se refere. Trainspotting pode ser traduzido de duas formas. Literalmente, “conferindo os trens” referindo-se a um passatempo dos jovens britânicos de conferir os horários que os trens passam e a outra forma refere-se a uma gíria escocesa que remete a fazer uma atividade sem sentido que implica numa total perda de tempo. E tudo que os personagens do filme têm é tempo para desperdiçar.
Mark Renton é, ao mesmo tempo, o personagem principal e narrador onisciente da história (no livro, a narrativa se desenvolve através de vários pontos de vista). Ele é apresentado na sequencia de abertura do filme (muito próxima de um videoclipe para a música Lust of Life (“tesão pela vida” de Iggy Pop): correndo pelas ruas de Edimburgo após cometer um delito e em off, seu famoso discurso “Choose Life” (“escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro, CD Player e abridor de latas elétrico. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha viver. Mas por que eu iria querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa. Os motivos? Não há motivos. Quem precisa de motivos quando se tem heroína?). Com esse discurso nada convencional, o protagonista nega uma vida segura, estabilizada e previsível.
Ao longo do filme, Renton e seus amigos (personagens distantes com quem os espectadores terão dificuldade de criar empatia) são conduzidos a limites extremos, que mostram o quanto eles conseguem tolerar psicologicamente e o que acontece quando eles enfim alcançam este limite. Mas será que há limites para eles? O subtítulo em português indica que não.
Trainspotting tornou-se um filme cult dos anos 90 e da cinematografia britânica. Contribuíram para isso, a trilha sonora (que vai de clássicos do rock dos anos 70 ao Britpop, além de músicas eletrônicas dos anos 90), as interpretações do elenco principal, forte linguagem visual, uma montagem enxuta e as várias referências da cultura pop. Além da dosagem exata de ironia, sexo, drogas, crime, violência, DST e crítica social.

 

 

A produção não foi a única da década a abordar o tema “drogas”, mas acabou sendo um dos mais controversos filmes sobre o tema. Na época de seu lançamento, a produção foi acusada de fazer apologia às drogas (principalmente à heroína). A obra teve coragem de dizer que é prazeroso se drogar e que é difícil larga-las (pelo menos, os personagens acreditam neste dilema). A meu ver, a maneira com que o tema foi tratado no filme não afastou o público, não glamorizou o mundo das drogas e muito menos fez um julgamento moral dos viciados. Ao invés do rótulo “filme sobre drogas”, temos uma obra sobre comportamento e sobre a falência do estilo de vida consumista, bastante forte nos anos 90.
Duas décadas depois, a sequencia final do filme (muito parecida com a primeira) continua atual: Mais uma vez, temos Renton fugindo. Fugir (ou tentativas de fuga) é o que mais ocorre com o protagonista e seus amigos ao longo do filme: fuga do cotidiano, da miséria, da polícia, de Edimburgo, da Escócia, da repetição dos dias em vidas vazias e da própria heroína (que não deixa de ser um veículo de fuga de suas vidas). Continuamos a viver, ao mesmo tempo em que fugimos. Seja desse mundo violento, se abrigando no mundo virtual ou se anestesiado com aquilo que usamos demasiadamente.
Renton foge e sorri, como alguém que tem a certeza de que chegou ao fundo do poço, e tudo que ele mais quer é voltar a ser uma pessoa normal (“Eu vou mudar. É a última vez que faço isso. Vou limpar e seguir em frente, virar careta. Escolhi viver. Já estou ansioso por isto. Vou ser exatamente como você: emprego, família, …”). Afinal, ser normal pode ser diferente. Mas Renton não sabe que no século XXI, a gente pode ser normal, ser diferente e ser a gente mesmo sem necessariamente termos algo em comum.

 

 

Hora de voltar ao século XXI. Hora de olhar pra frente e pensar o que essa nova sequencia tem a nos oferecer. Um tributo ao filme original? A vontade coletiva de elenco e direção em trabalhar juntos outra vez? Que dilemas Renton e sua turma irão enfrentar em pleno século XXI?


A verdade é que o mundo deslocado vivido pelos personagens em 1996 já não existe mais. As drogas são outras. A música mudou. A maneira de nos comunicar também. E o cinema também mudou. Nestes últimos 20 anos, é incontável a quantidade de filmes que tiveram uma inspiração direta ou indireta em Trainspotting, além daqueles que copiaram descaradamente a obra-cult de Boyle e foram malsucedidos. Como bom fã da obra, o que me resta é torcer pra que dê tudo certo e só.