O Bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla é um filme que está presente na lista de favoritos de grandes realizadores do mundo todo, e não à toa. Um filme que veio do lixo, do usado, do desperdiçado, que alcançou um patamar que muitos já esperavam que ele iria alcançar. Sua relação com a
nouvelle vague francesa, com o cinema novo e seu cinema marginal são intrínsecas, observando as estéticas usadas por Sganzerla, na forma da decupagem dos planos, na forma de filmagem, e vendo tudo o que há de moderno no filme. A visão que privilegia o novo acima do novo, em que o cinema moderno dá um salto gigante, fazendo com que perceba o quão ilimitado ele realmente é.
O cinema moderno surgiu discretamente, mas ganhou uma voz monstruosa com a explosão da nouvelle vague, a “nova onda” francesa, que nascida diretamente dos críticos que souberam exatamente que conceitos queriam quebrar com o cinema clássico, foi um sucesso absoluto, pela novidade e as renovações “refrescantes” que ela trouxe consigo. Um princípio básico do cinema moderno é o de que você nunca poderá conhecer seu personagem por completo. O herói do filme é inalcançável, um herói fechado. E para quê mais inalcançável, complexo e difícil de compreender do que o próprio bandido da luz vermelha?
Consciente disso, Rogério Sganzerla molda o personagem da mesma forma que molda o filme: expressa o puro desespero e deterioração, sem dar explicações, não há necessidade disso, afinal, no cinema moderno, como o herói (no caso anti-herói) é intrinsecamente inalcançável, o máximo que você pode fazer, é observá-lo. Mais inalcançável ainda é João Acácio, que além de assumir a faceta de bandido da luz vermelha, o implacável, ainda se une à outras identidades, bastante distintas entre si.
Além dessas mudanças na narrativa, do herói introspectivo e com dramas mais palpáveis e reais, procuraram quebrar esteticamente através do uso da filmagem com câmera na mão, e as gravações externas, ao ar livre, para trazer mais vida à película, trazendo a cidade e seus habitantes reais como parte da obra e da estética do filme, que simbolizavam o desprendimento da dependência dos grandes estúdios de gravação.
O Bandido da Luz Vermelha leva essa tendência ao extremo com todas as suas cenas gravadas em externa, no sentido de fora de estúdio, e todas aproveitadas em situações cotidianas, nas ruas de São Paulo. Rogério ainda leva sua própria tendência de querer dar mais realidade à película ao se propor a gravar o filme em um dos bairros mais perigosos de São Paulo na época, a Boca do Lixo. Traz um risco à equipe? Possível, mas com certeza valeu o preço.
Por consequência disso, os planos no lixão, nas ruelas, nas ruas movimentadas do perigoso bairro, acabam por ser incrivelmente viscerais. A violência constante, o tumulto, a prostituição, tudo muito palpável nas imagens apresentadas. Tudo é muito cru, nada é regrado, tudo é feito pela vontade, pelo desejo de tornar toda a experiência fílmica uma coisa real e nítida, quase que sensorial.
Com essa ideia, é fácil traçar um paralelo entre a criação de O Bandido da Luz Vermelha, de acordo com o contexto da época, e o Cinema Marginal no Brasil, na década de 60. Rogério Sganzerla, durante as gravações do filme, escreveu um manifesto do dito “Cinema fora-da-lei”, dividido em treze tópicos. Nele, é possível entender com facilidade as referências do realizador, e seus anseios pela experimentação em seu cinema. Através desse discurso, pode-se reafirmar os aspectos no cinema de Rogério Sganzerla. Na época, o Cinema Novo era predominante no circuito nacional, um outro movimento que tinha como principal intuito quebrar com as estéticas defasadas do cinema clássico, que ainda impregnavam o cinema nacional. Mas, ao contrário do Cinema Novo, o Cinema Marginal de Rogério Sganzerla vinha em contrapartida com a estética da fome do Cinema Novo, criando a estética do lixo, em todos os sentidos.
Em agrupamento a estética do lixo na narrativa, é possível correlacionar esta opção estética com a própria forma de filmagem e montagem, já que muito da produção do filme vinha de coisas que eram reaproveitadas, levando a estética do lixo ao extremo. Assim, gerando um novo estilo, a política do precário.
As pontas da película, sobras, se utilizadas para filmar podem produzir erros, ruídos na informação, deformação. No processo de filmagem são descartadas, para preservar a integridade da imagem. Filmar com pontas é uma atitude arriscada. Ponta é uma sobra. É algo que não pode ser aproveitado, e é rapidamente descartado. Em O Bandido da luz Vermelha, Rogério Sganzerla optou por usar sobras de outros filmes para rodá-lo, em um ato de coragem, já que era completamente incerto como seria o resultado, já que era um fato de que a imagem primordialmente perfeita já estaria descartada. Mas isso era algo incrivelmente bom para Sganzerla, já que isso representaria a estética do lixo numa forma metalinguística, de uma forma completamente única e inesperada.
Apesar de o resultado ser completamente aleatório, Rogério sabia o que estava fazendo. Desde dar a liberdade aos atores para improvisarem até os figurinos – que eles mesmos pegavam de seus próprios guarda-roupas –, até na forma de montagem com línguas de rolos de filmes usadas. Constituindo estilhaços, mistura de diferenças, instabilidades, multiplicidades, ambiguidades, um jogo de citações e paródias, indeterminações, acasos e de incongruências. “a incongruência favorece toda a sorte de incorporações, metamorfoses.” (Ismail Xavier) Essas incorporações citadas por Ismail Xavier, reforçam a ideia de uma alegoria à sociedade brasileira daquela época. Através de retalhos repentinos de imagens que de inicio parecem aleatórias, mas que conversam entre si, vai moldando-se uma porção de alegorias. Toda essa estética reforçada ainda mais no texto que é constantemente repetido durante todo o filme “o lixo sem limites, senhoras e senhores”.
Do tesão pelo fazer cinema, ao gozo do realizador, nasce uma das obras cinematográficas mais importantes do século vinte. Jorrada nos olhos do espectador, inundando a mente, fazendo com que seja sentido e apresentado uma forma de fazer cinema jamais vista. Uma revolução infinita em uma hora e trinta minutos.
Atual Vice-presidente da Aceccine e sócio da Abraccine. Mestrando em Comunicação. Bacharel em Cinema e formado em Letras Apaixonado por cinema, literatura, histórias em quadrinhos, doramas e animes. Ama os filmes do Bruce Lee, do Martin Scorsese e do Sergio Leone e gosta de cinema latino-americano e asiático. Escreve sobre jogos, cinema, quadrinhos e animes. Considera The Last of Us e Ocarina of Time os melhores jogos já feitos e acredita que a vida seria muito melhor ao som de uma trilha musical de Ennio Morricone ou de Nobuo Uematsu.