Aproveitando que esta semana teve início o Festival de Cannes 2016, uma das principais vitrines de cinema da atualidade, resolvi ver um filme que estava devendo desde ano passado, o vencedor da Palma de Ouro, o prêmio principal do festival, em 2015, o filme Dheepan – O Refúgio (Dheepan, 2015), dirigido pelo diretor francês Jacques Audiard, conhecido por Ferrugem e Osso (De Rouille et d’Os, 2012) e O Profeta (Un Prophète, 2009).
Dheepan trata de um tema importantíssimo e muito em voga nos últimos anos, onde centenas de pessoas tentam fugir de países em estado de guerra, principalmente no Oriente Médio, e tentam se refugiar em países da Europa, como Alemanha e França, onde precisam se manter em situações precárias e muitas vezes sem a aceitação de boa parte dos habitantes locais. No filme, os refugiados não são do Oriente Médio, mas do Sri Lanca, onde uma guerra civil assola o país já há quinze anos. Dheepan (Jesuthasan Antonythasan) é um guerrilheiro tâmil, grupo separatista que luta pela independência de uma região ao norte do país, que, após ver tantas mortes e tanto sofrimento, decide deixar o país, mas para conseguir uma identidade falsa precisa estar acompanhado de uma família, é quando seu destino se cruza com o de Yalini (Kalieaswari Srinivasan), uma jovem que também deseja deixar o país após ter sua vila dizimada em um conflito, mas o casal ainda precisa de uma criança para que se constitua uma “família” e acabam incorporando ao grupo Illayaal (Claudine Vinasithamby), uma menininha de 9 anos que perdeu sua tia no mesmo conflito. À partir daí acompanhamos estas três pessoas, que nunca haviam se encontrado antes, forçadas a agirem como uma família de imigrantes, tentando sobreviver em uma espécie de conjunto habitacional nos subúrbios de Paris.
Logo, Dheepan consegue um emprego como zelador do conjunto habitacional e percebemos que aquele é um lugar tomado pelo tráfico de drogas, com constantes conflitos entre gangues rivais, fazendo com que, mesmo em um país dito de “primeiro mundo”, os três continuem a viver em meio à tiroteios e mortes. O estabelecimento dos três e a introdução em um lugar de cultura e comportamentos tão diferentes dos seus são também problemas que acompanham os personagens. Yalini queixa-se de ser vítima de risos e olhares constantes, sendo obrigada a usar um véu em sua cabeça, mesmo que não seja costume em sua religião, em outro momento o casal conversa sobre as diferenças no humor das pessoas deste estranho lugar, enquanto isso Illayaal tem problemas para se adaptar às crianças em seu novo colégio e ainda tem que lidar com o desafio de aprender uma nova língua. Além dos desafios externos os três se deparam constantemente com os internos, afinal o quão estranho pode ser viver em uma casa com pessoas antes totalmente desconhecidas?
As escolhas estéticas do filme são interessantes e acertadas, intercalando a fotografia entre grandes closes ou planos fechados que salientam a aflição constante nos rostos desses personagens e grandes planos abertos destacando o deslocamentos destes naquele lugar. Achei fascinante o uso de dois breves planos, em momentos diferentes do filme, de um elefante se movendo na mata, que apesar de inicialmente parecerem deslocados da narrativa, são muito efetivos em mostrar a afetividade dos três com seu lugar de origem, mesmo que tenham sido dolorosamente obrigados a deixá-lo.
Não demora até que, com a chegada de um líder militar refugiado e os constantes tiroteios no local, Yalini, Illayaal e Dheepan seja novamente atormentado com lembranças traumáticas da guerra que havia deixado para trás, levando os três, que começavam a se adaptar, a terem recaídas drásticas. No terceiro ato me senti incomodado pela mudança violenta do tom que o filme levava até aí, com um enfoque maior nas questões dramáticas do relacionamento entre os três e sua adaptação, passando para um clímax digno de filmes de ação.
Uma coisa que me desagradou um pouco foi o título do filme, que leva o nome de apenas um dos protagonistas, sendo que as duas personagens mulheres tem enorme importância no desenvolvimento de toda a narrativa, principalmente Yalini com sua convivência na casa de um dos chefes do tráfico local, cuidando de seu idoso pai, o que está diretamente ligado ao conflito final do filme, além de seus próprios dilemas pessoais, tão potentes quanto aos de Dheepan, tornando-a também, na minha opinião, protagonista da história.
Mas talvez o que mais tenha me desagradado no filme tenha sido seu desfecho, que se dá de modo incongruente através de uma grande elipse temporal, com uma cena de felicidade quase surreal em um filme que se propunha a meu ver nos apresentar uma dura realidade que este trio, mesmo que fictício, pudesse sofrer como as centenas de refugiados sofrem. O que me parece é que ao tentar agradar o público com um final tão otimista, mesmo que enalteça a esperança, o diretor e co-autor do filme tenha colocado toda a defesa que sustentou ao longo do filme abaixo em uma única cena, pois sabemos que o número de refugiados que consegue se estabelecer bem na Europa é muitíssimo baixo.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.