Se na semana passada (
PARTE 1) pensamos em como Xavier Dolan começou, a partir de seus primeiros filmes, a trabalhar com as relações humanas em várias instâncias, tendo elas como preceitos narrativos, nessa semana vemos de que forma ele intensificou e amadureceu em suas escolhas como realizador, nessa busca de trabalhar com essas relações humanas de uma forma ainda mais visceral e potencializando a força dos desejos que movem cada filme.
Se em seus dois filmes anteriores Xavier Dolan trabalhou as relações de mãe e filho, de amizade, e de amor não correspondido,
Laurence Anyways (2012) conclui a não planejada trilogia dos “amores impossíveis”, carinhosamente apelidada pelo realizador, com um amor impossível para um casal atípico. O filme segue Laurence, que vive no corpo de um homem, escondendo o fato de ser uma mulher trans de todos, incluindo sua namorada, Fred, uma explosiva produtora audiovisual por quem é perdidamente apaixonada. Em seu aniversário de 30 anos, Laurence revela à Fred seu segredo, decidindo a partir daí passar a viver efetivamente como uma mulher. Mesmo abalada com a notícia, Fred decide permanecer ao lado da pessoa que ama, que passa a sofrer as mais diferentes adversidades para se tornar quem realmente é, colocando o amor que existe entre os dois a prova de tudo.
A grande pegada de Laurence Anyways é apresentar a história sobre o amor desse casal, e seus altos e baixos, da forma mais épica possível. Nesse filme, temos cenas bastante extensas, planos prolongados, acompanhado de uma trilha sonora incrivelmente pontual e uma encenação exacerbando o lirismo e os excessos que já haviam sido trabalhados em
Amores Imaginários (Les Amours Imaginaires, 2010) de uma forma mais refinada e elegante, intensificando todo o enredo do filme de uma forma que funciona melhor do que a ironia que essa escolha cinematográfica trouxe para o filme anterior.
Em questão de encenação, esse tem, sem dúvida, a mais refinada da acidental trilogia. Não são só personagens que tracejam pelos planos, explorando cada espaço da tela como em uma pintura viva, mas também da própria tela, que por muitas vezes perseguem esses personagens, na urgência e catarse dos momentos de cada um. São em momentos de emoções intensas em que os próprios personagens não pensam em explorar: eles, ao invés de serem meros objetos de um plano bem montado, tornam-se os guias da câmera, que os seguem, de uma forma muito orgânica. E isso vai se transformando junto com os corpos dos personagens, que de uma forma bastante didática vão se modificando através do filme: Laurence tornando-se cada vez mais a mulher que quer ser, e Fred cada vez menos extrema, mais serena.
E então, Xavier Dolan surpreende ao apresentar para o público um suspense. Ainda que seja adaptado de uma peça, em
Tom na Fazenda (Tom à la Ferme, 2013) é possível ver muito do realizador no roteiro, já que foi o próprio quem o adaptou.
O filme conta a história de Tom, que após a morte de seu parceiro viaja para o interior, até a casa da mãe de seu companheiro, para seu funeral. Ao chegar lá, ele descobre que a mãe dele não sabia que o filho era homossexual, e é forçado por Francis, irmão de seu parceiro, a sustentar a mentira. Porém, Tom acaba sendo envolvido por toda a situação, pela possibilidade de estar em um lugar que tem a presença de seu falecido companheiro, e também envolvido pelo próprio Francis, até passar a cogitar permanecer no lugar.
Nesse, é fácil perceber que suas escolhas estão mais maduras, optando por algo mais sólido, sem perder o lírico e a intensidade de seu cinema. Nesse filme, o trabalho de corpo é certamente o mais impressiona. Todos os personagens estão em desespero. Seja o desespero pela perda, o desespero por se sentir preso, ou o desespero por não saber mais em que lugar do mundo está. O sentimento de urgência prevalece sobre o filme, mas se consolida de verdade através dos corpos. Praticamente todos os movimentos são súbitos, ou urgentes. As ações são impulsivas, o relacionamento dos personagens são tensos ao extremo, pela intensidade dos seus corpos. Pode-se dizer que esse comportamento dialoga com o de Hubert e Chantele em
Eu Matei Minha Mãe (J’ai Tué Ma Mère, 2009), é notável que a urgência é muito mais presente nesse filme. Isto deve-se a sensação de deslocamento que os personagens sofrem durante o filme, inclusive os nativos.
TOM AT THE FARM, (aka TOM A LA FERME), from left: Xavier Dolan, Pierre-Yves Cardinal, 2013. ©Diaphana Films
Tom sofre com a perda, mas é notável a sensação de deslocamento de seu corpo no ambiente campestre. A paisagem finalmente aparece com força no cinema de Dolan nesse filme, para intensificar a sensação do não-pertencer ao ambiente. Na maioria das cenas externas é possível ver a imensidão do campo em alguns planos, fazendo com que você seja obrigado a sentir a pequenez do corpo diante dos campos vastos da fazenda.
O corpo de Francis é nitidamente o mais intenso, ao passo que ele é o personagem mais atormentado do filme. Seu comportamento obsessivo dá mais força para o seu corpo. Você nunca tem certeza se ele está bem colocado no campo, ou não, pois apesar daquela ser sua terra natal, sua solidão faz com que seu pertencer seja questionado. Graças ao corpo e à paisagem, a questão do pertencer é brilhantemente trabalhada nesse filme. O filme torna-se facilmente um retrato do desespero, sendo um dos trabalhos mais reais de Dolan.
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Se você perdeu a primeira parte sobre os dois primeiros filmes do diretor confira aqui: PARTE 1
Ou siga para ler a terceira e última parte da série: PARTE 3
Graduado em Cinema geminiano com ascendente em escorpião. Conhece muito de tudo, faz de tudo um pouco. Fã de carteirinha de Xavier Dolan, John Green e Steven Universe. Leitor inveterado, Ilustrador, escritor e atrasado para tudo.