Em certo momento de “Les plages d’Agnès” (As Praias de Agnès, 2008) ouvimos uma senhora mostrando desejo de observar um jovem montando uns azulejos no chão e exclama que aquilo é como a memória, feita de fragmentos.
É assim que vejo este belo filme. Uma montagem de memórias, das memórias de Agnès Varda, diretora e “protagonista”. Pedaços desordenados de memória. Uma espécie de autorretrato.
As sequências de imagens, juntamente com a voz da cineasta narrando os momentos de sua vida, acompanhada de reconstruções de alguns desses momentos, me remontou uma avó contando histórias a seus netos e mostrando-os um álbum de fotografias de família.
Agnès, em sua vivacidade contagiante, inicia seu filme anunciando que irá se abrir para nós e dentro de si há uma praia. E que bela praia. Nos leva a Bruxelas, onde deu início a sua vida, nos fazendo viajar em sua infância, em seus momentos mais íntimos, em sua forma de ver o mundo. E percebemos que ali está seu ponto de vista sobre as transformações que a arte, as imagens, a fotografia e o cinema, passaram durante seu tempo de vida. E de como ela fez parte de algumas dessas transformações. Desde seu primeiro filme sobre a vida em um bairro litorâneo, passando pela Nouvelle Vague como uma mulher em um grupo quase essencialmente masculino, levando-nos à Hollywood dos grandes estúdios, recordando de grandes amigos que já se foram, documentando movimentos sociais acalorados em seus momentos mais fortes em uma América agitadíssima, a uma China revolucionária e bela, a descoberta da liberdade feminina. Até finalmente constituir em tela sua família, um último refúgio, e uma despedida ao marido e amigo, o também cineasta, Jacques Demy.
“Les plages d’Agnès” é uma bela experiência que nos faz pensar em nossas próprias vidas e de como a estamos vivendo.
Retornando a um momento da vida de Agnès, encontramos inevitavelmente muitos outros grandes cineastas, entre eles Alain Resnais, que, assim como Agnès Varda, em alguns de seus filmes também trata bastante da memória, mas de uma memória diferenciada. Em “Hiroshima, mon amour” (Hiroshima, Meu Amor, 1959) Resnais vai, quatorze anos depois, ao palco de uma das maiores tristezas da humanidade. Mas como ir a um lugar tão íntimo, tão cercado pela tristeza e pelo horror? Inicialmente o diretor desejava realizar um documentário sobre a tragédia, sobre como a cidade se reorganizava anos depois, assim como já havia feito nos terríveis campos de concentração nazistas poucos anos antes em “Nuit et brouillard” (Noite e Neblina, 1955), mas decidiu pela delicadeza ao, pela primeira vez, dirigir atores.
O diretor decide por nos contar uma história de amor repentina entre duas pessoas diferentes, onde ambas são cercadas por memórias trágicas em suas vidas. Trata-se de uma longa despedida e de uma constante vontade de esquecer, e para assim fazer é preciso lembrar. A simetria entre as duas lembranças, da cidades de Hiroshima e Nevers, constrói belamente um estudo e uma reflexão sobre a memória e a força que esta tem sobre nossas vidas.
Memórias, como a vida que as constrói, são muito efêmeras.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.