O Orientalismo no filme “O Homem Que Queria Ser Rei” (1975).

Orientalismo é um estilo de pensamento baseado na dualidade Ocidente-Oriente que teve início no final do século XVIII. São tanto produções literárias quanto pictóricas feitas por ocidentais de forma a representar ou tentar entender e explicar o Oriente. O termo foi cunhado pelo intelectual palestino Edward W. Said, em sua obra “Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”, de 1978.
Mas definir o orientalismo como a simples sistematização do processo colonizador é deveras superficial, pois para nações imperialistas a prática do orientalismo ajudou não só na compreensão do mundo ao qual impunham seu império, como também na definição e reconhecimento próprios, como um povo civilizado e detentor de saberes necessários para um governo eficaz. Assim, o orientalismo parece ser uma forma de o Ocidente se impor em relação ao Oriente de forma que esse mesmo orientalismo “ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem, ideia, personalidade e experiência de contraste”.
O filme analisado trata-se exatamente de uma espécie de metáfora da ideia do orientalismo. Baseado na obra homônima de Rudyard Kipling, que se pode dizer era um autor orientalista, nascido em Bombaim na Índia Britânica em 1865, viveu a maior parte de sua infância na Inglaterra onde completou os estudos. Em seguida retornou à Índia como jornalista e correspondente britânico. Kipling escreveu muitos contos e poemas que se tornaram referência na Inglaterra de sua época e que muitas vezes exaltavam as glórias do Império Britânico.
O enredo nos traz a trajetória de dois desertores do exército durante a ocupação inglesa na Índia, Daniel Dravot (Sean Connery) e Peachy Carnehan (Michael Caine), que planejavam uma aventura em um território ainda não colonizado pelo homem branco, o fictício reino do Cafiristão, localizado em algum lugar do continente asiático, em busca de riquezas e poder. A dupla passa por diversas dificuldades para conseguir chegar ao local, mas ao chegar se deparam com uma situação bastante intrigante: uma tribo local sofria constantes ataques de outra tribo inimiga e os dois aproveitam desta situação para demonstrar sua perícia no campo de batalha e treinam um pequeno exército de nativos para lutar contra o hostil inimigo. E assim conseguem a vitória e em seguida muitas outras contra demais tribos, até que os dois ingleses são aclamados como reis do Cafiristão. Em uma das batalhas Dravot é atingido por uma flechada no peito, mas instantaneamente arranca a flecha e o ferimento sequer sangra, o que faz os habitantes do lugar o idolatrarem como a um deus, na verdade o filho de um deus, Sikander, que depois se revela como o próprio Alexandre, o Grande, que havia estado naquele território centenas de anos atrás e que havia prometido retornar.
É inevitável a comparação das aventuras dos dois soldados britânicos com a própria empreitada realizada pelo Império Britânico em suas colônias no Oriente, como Índia e Egito, por exemplo. A tribo que acaba por ser governada pelos dois ingleses nada mais é que uma representação do próprio Oriente em si, que sempre é tratado pelos orientalistas como algo homogêneo. Em uma de suas citações, Edward Said nos fala desta homogeneização do Oriente onde“os orientais eram em quase todos os lugares quase os mesmos”. Assim, pode-se perceber que o orientalismo tem mais a ver com o Ocidente do que com o próprio Oriente, pois é uma forma de sobrepor a cultura do oeste sobre a do leste, o que Gramsci chamou de hegemonia.
Posteriormente no filme, o personagem Dravot acaba assimilando, o que antes não passava de um mal entendido, a mistificação de sua pessoa como filho de Sikander, portanto um semideus, e assumindo seu governo, que buscava o desenvolvimento e a integração de uma região antes bárbara (temos a construção de uma grande ponte como uma alegoria disto), como necessário para o bem daquela população. Busca então se casar com uma nativa e estabelecer uma dinastia, desistindo do antigo plano de voltar para a Inglaterra com as riquezas adquiridas, elevando sua administração a nível quase divino. Entretanto, na cerimônia de casamento, sua noiva acaba o mordendo, fazendo seu sangue escorrer pela face. Logo que os sacerdotes, que antes apoiavam seu governo, veem a cena, descobrem que Dravot não passa de um homem comum e incitam a população para perseguir a dupla, que acaba capturada. Dravot é forçado a atravessar a ponte enquanto cortam suas amarras e este acaba por cair no desfiladeiro e morrer, já o Peatchy é crucificado, mas sobrevive e volta para a Índia para contar a história a Kipling.
A assimilação por parte de Dravot reflete uma das principais características do Orientalismo, a naturalização da relação colonial, onde esta é imposta pela força, convencendo o colonizador e o colonizado da necessidade desta relação. Tomando como exemplo o discurso do veterano parlamentar britânico Arthur James Balfour, Said:
“A Inglaterra sabe que o Egito não pode ter autogoverno; confirma isso ocupando o Egito, para os egípcios, o Egito é o que a Inglaterra ocupou e agora governa; a ocupação estrangeira, portanto, torna-se ‘a própria base’ da civilização egípcia contemporânea; o Egito requer, na verdade exige, a ocupação britânica.”
Interessante perceber também que não só o colonizador europeu se descobria quando da ocupação dos territórios asiáticos e africanos, mas esses povos colonizados também se descobriam diferentes dos colonizadores. No caso do filme percebe-se que após a descoberta por parte dos nativos de que estavam sendo enganados pelos dois ingleses, os mesmos perdem totalmente a ligação que tinham com Daniel Dravot enquanto este era considerado um deus entre eles, somente para logo em seguida matá-lo de uma forma bastante simbólica, derrubando-o junto com a ponte que ele havia ordenado construir e que era o maior símbolo da civilização que estava impondo àquele povo, de forma que, ao destruírem este símbolo, voltariam imediatamente ao seu estado normal, ou seja, à barbárie. Mais interessante ainda é o significado de um de seus últimos atos antes de perecer: ambos os aventureiros britânicos cantam em voz alta o hino de sua nação, revelando momentos antes de sua potencial morte que ainda podiam se reconhecer como nobres cavalheiros do grande Império Britânico.
O historiador inglês Peter Burke, em seu livro Testemunha Ocular, nos fala um pouco sobre representações do “Outro” principalmente em pinturas, mas pode nos dar uma idéia destes estereótipos na obra de Rudyard Kipling e consequentemente no próprio filme. O orientalismo trata o Oriente de forma estereotipada, assim exagerando nas descrições, omitindo alguns traços, e apresentando-o como exótico. Uma das principais características do conhecimento que o Ocidente tem sobre o Oriente é que o que há no leste é estranho, exótico ou pelo menos diferente. Para Burke o confronto entre culturas diferentes pode ter duas reações opostas, uma seria a assimilação de uma em relação a outra, ou seja, achar que o “outro” pode ser de alguma forma semelhante ao “nós”, e a segunda reação seria o oposto disto e assim há a tentativa de representá-lo como o contrário do “nós”, pois “é através da analogia que o exótico se torna inteligível, domesticado”.
Em alguns dos trechos do filme é possível perceber a forma como a dupla de brancos europeus governa os nativos da região. Após os dois adquirirem conhecimento do cotidiano daquele povoado, sua cultura, religiosidade e comportamento, estariam aptos e teriam o dever de o governar. Esta também é uma ideia bastante difundida pelas grandes potências coloniais que eram Inglaterra e França, a ideia de que o conhecimento sobre algo lhes dava a liberdade de ter controle sobre este, pois “as raças submetidas simplesmente não tinham o que era preciso para saber o que era bom para elas”, ou seja, não era possível que uma colônia Oriental se autogovernasse, ideia esta que muitas vezes justificava o orientalismo, ou o estudo do Oriente. Outro trecho bastante interessante que nos leva a pensar novamente sobre a imposição de uma cultura tida como “superior” sobre outra “inferior” e também sobre o estereótipo da assimilação descrita por Burke é quando nos é apresentado um esporte jogado pelos nativos do Cafiristão que se parece muito com um famoso esporte inglês, o críquete, no entanto o exagero do estereótipo e seu exotismo são imediatamente apresentados quando se revela que a “bola” utilizada no jogo dos nativos é a cabeça de um oponente derrotado, o que causa muito espanto nos dois protagonistas.

 

 

Um detalhe que pode ser levado em consideração em relação à obra, é que o povo do Cafiristão parece disposto a se submeter ao governo de dois desconhecidos, não só isso como já haviam se submetido à outro desconhecido centenas de anos antes, ao primeiro Sikander, ou Alexandre, o Grande, representando aí talvez a “inegável” superioridade do Europeu sobre os povos orientais e africanos.
Uma das coisas que o filme nos faz pensar é que o orientalismo não encerrou com o século XX, muito ainda pode ser percebido nos dias de hoje. A ideia que hoje é construída do que se convém chamar de Oriente Médio ou Oriente Próximo é fruto dessa ideia Ocidental bastante difundida e durante muito tempo estereotipada do que é o Oriente. Para Said:
“Um aspecto do mundo eletrônico pós-moderno é que houve um reforço dos estereótipos pelos quais o Oriente é visto. A televisão, os filmes e todos os recursos da mídia forçaram a informação para dentro de moldes cada vez mais padronizados. No que diz respeito ao Oriente, a padronização e a estereotipação cultural intensificaram o domínio da demonologia acadêmica e imaginativa do ‘Oriente misterioso’.”
Isto se dá, com relação a todo o Oriente, principalmente após a entrada do Japão na Segunda Grande Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã e mais recentemente ao 11 de Setembro, quando árabe se tornou quase um sinônimo de terrorismo.
Trailer do Filme:
Por Elvio Franklin e Ricardo Menezes