Dá pra dizer sem medo que o cinema é também composto pelo gênero canino. Chega a ser evidente o quanto anunciar um animal de estimação numa produção rende apreço por parte do público. Como mais nova adaptação que a obra literária O Chamado da Floresta escrita por Jack London inspirou, a película homônima, O Chamado da Floresta (The Call of the Wild, 2020) reverbera a emocionante trajetória do cão Buck sobre o viés da autodescoberta. Pena que as boas intenções não salvam o filme da camada superficial em que se apoiou.
Parando para pensar, há alguns cachorros que conseguiram marcar a Sétima Arte ao longo dos anos: Cujo, Beethoven, Marley, Lassie, Hachiko, ou até mesmo em animações como Bolt, Toby, mas nem todos em CGI conseguiram agradar como o live-action de Scooby-Doo, e O Chamado da Floresta não é uma exceção. Em plena era de ouro, acompanhamos o atrapalhado cão doméstico ser arrancado dos seus privilégios e ser contrabandeado para o Alasca, o que impulsiona uma dura troca de realidade, aventura de autoconhecimento e redescoberta.
O pior problema da produção é nítido antes mesmo dos cinco minutos em tela: os efeitos digitais. Para um cachorro que assume o caráter de protagonista, chega a ser incômodo como a escolha para o visual não deixa de passar a sensação de superficialidade pro Buck que rapidamente destaca personalidade e carisma em sua caminhada. O bom é que o espírito descrito por Jack London em seu livro não foi totalmente perdido sobre a ótica de Chris Sanders ao pegar aquele pensamento oculto de “‘como os cachorros nos enxergam”? e torná-lo um objeto identificável para o que a história se propõe. Aliás, Buck é só um pretexto em analogia a evolução.
Mudar de um dia para o outro é algo impossível. Requer decisão, reflexão, e um esforço necessário para colher os resultados e, nos piores casos, há quem acredite que não precisa transcender. Para Buck, a mudança veio de forma brusca ao ser tirado da bonança e segurança que tinha com uma família californiana e ter todo aquele cenário de conforto substituído pela imundice, maus cuidados, violência e submissão. Enquanto ainda assimilava a nova realidade que se encontrava, para o ex-animal de estimação, um fato se fazia presente: a brutalidade e o porrete tinham poder sobre qualquer outro cão no recinto.
Visto essa aceitação, Buck é envolto novamente em um lugar de esperança ao conhecer a preciosidade que é trabalhar em equipe junto a outros cães percorrendo o Alasca, arrastando um trenó para entregar cartas numa comunidade. O que desperta em Buck a sede por saber que está onde pertence é desbravar a liderança para então se desvincular do que o prende a necessidade do afeto do homem: a gratidão, o instinto de fidelidade para com o dono que demonstrou carinho e cuidado. Ao mesmo tempo que a natureza grita também para ser aceita, ter o chamado atendido bem de dentro muito além da dívida, passagens e vivências nas mãos do homem.
No fim de tanta batalha, fica claro que Chris Sanders suavizou essa história para os moldes da “Sessão da Tarde”. O que não tem nada demais se conseguisse não ser caricato e preguiçoso em aspectos que não geram profundidade em conflitos tão rasos. Pode até se imaginar os ingredientes dos quais O Chamado da Floresta é feito: muito CGI, cachorros que só faltam falar de tão humanos e fofura como alívio cômico. O ruim é que nessa mesma mão foi o que pesou e deixou a coisa aqui a desejar ao ter tanta expressividade canina computorizada numa história regada de superação.
Ama ouvir músicas, e especialmente, não cansa de ouvir Unkle Bob. Por mais que critique, é sempre atraído por filmes de terror massacrados. Sua capacidade de assistir a tanto conteúdo aleatório surpreende a ele mesmo, e ainda que tenha a procrastinação sempre por perto, talvez escrevendo seja o seu momento que mais se arrisca.