O último filme de Céline Sciamma, quarto longa-metragem de sua carreira, foge do escopo de temas tratados em seus trabalhos anteriores. Além de ser uma história de amor, Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait de la Jeune Fille en Feu, 2019) é um romance de época ambientado no século XVIII. O filme segue Marianne (Noémie Merlant), uma pintora que é contratada para pintar o retrato de Héloïse (Adèle Haenel), a filha de uma condessa (Valeria Golino). O retrato serviria para selar o casamento da moça com um homem que mora em outro país. Héloïse, no entanto, se recusa a posar para o retrato. Marianne então tem de fingir que é uma dama de companhia para ter acesso à imagem de Héloïse e, assim, fazer seu retrato apenas contando com sua memória. Ao longo dos dias que elas passam juntas na ilha onde fica a casa, as duas acabam se apaixonando e tendo um relacionamento.
Fiquei curiosa em saber como Céline Sciamma filmaria uma história assim pois ela ficou conhecida por filmes como Tomboy (2011) e Garotas (Bande de Filles, 2014), ambos contemporâneos – tanto no que se diz ao tempo em que se passam, como a estética sobre os quais se constroem – e falando sobre identidade sem colocar o romance em seu centro. Podemos ver neste filme a marca da direção de Sciamma e como ela consegue se reinventar dentro de um gênero tão distante de seus trabalhos anteriores consolidando-a assim como uma diretora extremamente consistente e inventiva.
Em um tempo onde todos os comportamentos femininos, principalmente na alta sociedade, são regrados e vigiados, é difícil imaginar em como um romance que vemos no filme poderia ser possível. Céline Sciamma escreve um filme onde não só isso é possível, mas também plausível. Como feito em Tomboy, por exemplo, a diretora e roteirista escolhe contar sua narrativa em um ambiente quase isolado, longe dos olhos da sociedade, para que suas personagens possam tem o mínimo de liberdade. A história aqui se desenvolve em uma ilha onde quase não há pessoas. Além disso, a casa onde Héloïse mora, é habitada apenas por ela, a criada, Sophie (Luàna Bajrami) e por sua mãe – que vai e vem. A casa vazia, as paisagens gigantescas e também vazias, são o cenário ideal para que Marianne e Héloïse se apaixonem e se permitam viver esse romance.
O filme se utiliza também de pouquíssimos elementos para se construir. Tudo o que aparece em tela é colocado no momento certo. Além da casa ser vazia de pessoas, ela é vazia também de objetos e móveis. Isso foge bastante daquilo que estamos habituados a ver em filmes de época onde os cômodos num geral são atolados de móveis, adornos, objetos. Ainda mais quando se filma uma classe abastada como a de Héloïse. O figurino também é extremante minimalista. Marianne, Héloïse e Sophie usam o mesmo vestido durante quase todo o longa, como se fosse um uniforme. Percebemos isso também em relação à música. Em entrevista a diretora disse que queria que nós espectadores tivéssemos a experiência da música que as personagens teriam nessa época. À época, muito antes da era da reprodutibilidade técnica, a música era algo distante do dia-a-dia. Por isso, só temos música de fato em três sequências do filme: uma quando Marianne toca no piano para Héloïse, quando elas estão junto de outras mulheres da ilha em volta de uma fogueira e as mulheres cantam algo em coro e a última quando Marianne vai a uma apresentação de uma orquestra. Exatamente pela falta de música durante todo o longa, a sua utilização pontual faz com que tudo seja mais forte quando ela aparece.
Temos que destacar também como o filme traz questões atuais políticas sobre o ser mulher na sociedade e as coloca de formas sutis, sem deixarem de ser potentes. O filme traz discussões tais como o não reconhecimento do trabalho artístico feminino, o casamento como forma de aprisionamento e contrato social e o direito sobre o próprio corpo. Além, é claro do próprio relacionamento em si entre as duas protagonistas. Não só por ser um relacionamento LGBTQ+, como pela forma como ele se desenrola. Os relacionamentos, ainda que entre pessoas do mesmo sexo, tendem a reproduzirem relações de poder. E eu acho que Retrato de uma jovem em chamas consegue chegar num relacionamento amoroso onde há de fato igualdade. Onde o encontro das duas não sobrepuja a individualidade de nenhuma delas, só potencializa.
O que nos leva a pensar como Sciamma torce o conceito de musa. Provavelmente um dos pontos centrais do discurso do filme. Como estamos com Marianne o tempo todo e começamos o filme já numa relação plano/contra-plano em que ela observa arduamente a imagem de Héloïse para fazer o retrato, daí poderia surgir uma relação de poder, na qual Héloïse é apenas o objeto de nosso desejo porque é o objeto de desejo de Marianne. Mas a diretora consegue transformar isso ao longo do filme e nos mostrar uma musa que também observa, que age, que tem opiniões. Héloïse não é passiva. À medida que o filme passa, nossa curiosidade sobre ela como mulher misteriosa sobre a qual não sabemos nada é substituída por afeto pela pessoa que ela é. A pessoal real que ela é. Isso seria revolucionário por si só enquanto construção de roteiro, porém a diretora traz isso para a forma como filma os corpos dessas mulheres e a forma como elas se relacionam. A ideia de poder construída pelo plano/contra-plano aqui é quebrada por causa dessa torção.
Retrato de uma jovem em chamas tinha tudo para cair em diversos tipos de clichê por causa do tema que trata, o gênero em que se encaixa, mas exatamente porque tem a coragem de arriscar, consegue ser um filme original. Surpreendente, terno e forte, com certeza é um dos melhores filmes sobre amor que já vi.
Uma capricorniana Bacharel em Cinema e Audiovisual. Diretora, roteirista, curadora e uma DJ formidável nas horas vagas. Grenda divide seu tempo entre o cinema, o cigarro e o litrão barato. Sabe dar conselhos e sermões como ninguém e dentre todos os seus vícios, o maior deles é a tabela de Excel.