Foi um romance. Uma paixão dessas que vêm sem explicação. As partes eram opostos completos, ou assim pensar-se-ia se não fosse colocada certa atenção no olhar para enxergar além do óbvio, e, mesmo com tudo isso, aconteceu: caí de amores por Downton Abbey em 2010, logo que estreou, e acompanhei do primeiro ao último episódio de suas temporadas, em 2015, um a um, semanalmente. Ao término, passei por todas as fases do luto até finalmente entender que tinha sido melhor para nós duas e, noves fora, zero, nossa história havia sido linda.
Sabendo disso, vocês já podem imaginar que a notícia de que aquela história e aqueles personagens seriam retratados no cinema foi recebida por mim com entusiasmo e, ao mesmo tempo, certo ar de preocupação, porque foi uma obra muito bem recepcionada pelo público e aclamada pela crítica ao longo dos anos em que ficou no ar.
Criada por Julian Fellows, a série é um drama histórico que apresenta a vida da família Crawley, pertencente à aristocracia britânica, na fictícia propriedade de Downton Abbey, em Yorkshire, no começo do século XX (1912 a 1925). O sistema aristocrático britânico e a relação entre os donos da propriedade e a criadagem que mantém o lugar pulsando são o elemento central da trama, o que traz um grau de complexidade que chega a ser surpreende quando o primeiro contato do espectador com a obra é apenas a sinopse do enredo, afinal, nada mais enfadonho e antipático do que acompanhar a vida de quem nasceu abastado e toma privilégio por prerrogativa, característica inerente das elites, aristocráticas ou burguesas.
Mas a beleza da produção é justamente o desenvolvimento de mais de uma dezena de personagens, que respiram o ar de Downton Abbey e constroem diariamente a estrutura daquele lugar, intrincada em relações literalmente verticalizadas entre os donos da propriedade e sua criadagem, que se dividem respectivamente entre os andares de cima e os andares de baixo da construção, com todos os conflitos advindos da diametrização dessas posições sociais, nos apresentando uma aristocracia decadente e uma classe trabalhadora que aspira novas possibilidades. Além disso, há também relações horizontais igualmente complexas, sejam advindas do convívio familiar, sejam advindas do convívio do trabalho servil, ou claro, venham elas de conflitos românticos.
O público, devo dizer, criou um vínculo muito íntimo com as personagens, porque Downton possui a habilidade de mostrar com vagar e delicadeza as nuances dos indivíduos que a compõem, tornando-as nossas conhecidas de longa data.
O filme então retoma essa sensação, dando continuidade à história em 1927, cerca de dois anos após os eventos do último episódio da série. A produção é ousada, pois não perde tempo explicando a dinâmica daquela forma de vida, tampouco quem são os personagens. Isso traz uma fluidez para a narrativa, que vai direto ao ponto, embora possa deixar o espectador que não está familiarizado com o programa de TV um pouco perdido, mas a fórmula funciona, pois o recorte narrativo trabalhado (a estadia, por uma noite, do Rei George V e da Rainha Mary em Downton Abbey) é bastante específico, o que permite que os elementos que conquistaram o público da série possam ser trabalhados em pinceladas rápidas, mas consistentes, através de um roteiro bem amarrado, sagaz e preciso.
Já para fãs da série, o filme chega a ser um encantamento desencadeado cena a cena, pois, à medida em que a trama vai se desenrolando, a memória do lugar e das pessoas vai sendo reavivada na mente. Aqui, precisamos enaltecer o elenco, quase todo o mesmo da série, composto de atores mais do que competentes no campo dramático, mas muito comprometidos com os toques de humor que perpassam as duas horas de filme, nos comentários sarcásticos e o jeito pomposo em forma, mas direto em conteúdo, em que a comunicação entre os personagens acontece.
Downton Abbey sempre retratou mulheres fortes, muito hábeis em caminhar por suas circunstâncias sociais, econômicas ou ambas e, no filme, isso ganha força na medida em que Lady Mary (Michelle Dockery) é quem comanda a propriedade e há um senso familiar de que essa tocha lhe está sendo passada, e Daisy (Sophie McShera), a sous chef, que começou em Downton como criada que acende as lareiras, quer construir um futuro para ela, e chega a questionar a própria monarquia! Mary e Daisy são o futuro em Downton.
Thomas Barrow (Robert James-Collier), hoje o mordomo da casa (posição mais alta na hierarquia dos criados), ganha destaque em um arco que gira em torno de sua homossexualidade, que, lembremos, na Inglaterra de 1927 era criminalizada, altamente reprimida e perseguida, o que foi motivo de um conflito interno pungente para esse que já foi vilão e viveu uma redenção que cativou os fãs da série.
Como não poderia deixar de ser, nossa querida Lady Violet Grantham, a matriarca da família vivida pela maravilhosa Maggie Smith, nos provoca sorrisos cheios e até gargalhadas com suas falas, que mais parecem flechas disparadas em todas as direções, mas são as verdades que todos queremos dizer e só podemos quando quebramos as barreiras morais com a idade mais avançada. Como sempre, Lady Grantham, aguerrida e indignada, compra briga com uma prima a respeito da herança dessa parenta, e isso nos rende uma tabelinha divertida entre Maggie Smith e Imelda Staunton (A Umbridge de Harry Potter de a Ordem da Fênix, 2007).
O mérito de Downton é coordenar eventos históricos com a vida privada de personagens fictícios, que são um mundo em cada um, criando uma atmosfera peculiar em se tratando de produções audiovisuais do gênero e é isso que ganhamos na tela do cinema.
Downton Abbey 😮 filme estreia em 24 de outubro e é uma produção que consegue honrar o sucesso da série que a antecedeu, trazendo todos os elementos e personagens, conta um pouco da história de cada um sem perder o foco no cerne de seu enredo, ao mesmo tempo em que é capaz de entreter um público novo, que pode até achar improvável, mas vai querer sair do cinema direto pra um chá das cinco com mindinho para cima e tudo mais que tem direito.
Um moça nordestina que descobriu liberdade no feminismo. Opinativa e tagarela aos montes, vem aprendendo o poder do silêncio e da frase “não sei”. De podcasts e vídeos de Youtube alimenta o seu pet Curiosidade e tem certeza que a trilha sonora da sua vida é a discografia da Beyoncé.