“Quem nos ensina a sermos normais quando nós somos únicos?”
Mutantes. Umas das criações mais adoradas dos quadrinhos. A oportunidade perfeita para discutir temas relevantes, principalmente o preconceito contra o que é diferente. A representação do orgulho de ser quem somos, porque não há ninguém como nós. Sucesso nos quadrinhos, na TV, e apesar de tudo, no cinema. Os mutantes e seus poderes são vistos como os heróis através dos X-Men, e como os vilões, através de qualquer um deles que queira usar seu poder para o mal. Mas a realidade é bem mais complexa que essa, não existem apenas heróis e vilões, e Legion foi a melhor representação do que é ser mutante e humano ao mesmo tempo.
Criada por Noah Hawley, Legion estreou em 2017 e, com apenas três temporadas, foi encerrada em 2019. Em um mundo midiático de hoje em que as séries continuam a serem exibidas por anos, mesmo que não tenham mais nada de novo a acrescentar, Legion contou a história que tinha de contar, e quando chegou ao fim, trouxe-nos a mensagem: “Comece novamente”.
Hawley ganhou notoriedade ao adaptar o filme Fargo: Uma Comédia de Erros (Fargo, 1996) em uma série antológica para o FX. E quando a emissora o ofereceu a oportunidade de trabalhar com mutantes, Hawley sabia que não queria contar outra história de heróis e vilões, mas sim a história da área cinza entre estes dois lados. Legion conta a história de David Haller (Dan Stevens), um jovem com esquizofrenia que passou a vida tendo alucinações, e que está há seis anos em uma clínica psiquiátrica. Logo, David descobre que na verdade é um mutante poderoso, e sua doença se mostra bem mais complexa do que ele pensava. A série apresenta as batalhas de David contra seus demônios, seus inimigos e, a mais perigosa de todas, contra ele mesmo.
Legion é uma série que todo amante da arte de contar histórias deveria assistir. A criatividade e engenhosidade de Hawley em todos os aspectos da produção é inspirador, e a história de David carrega lições que vão muito além do mundo fantástico dos mutantes. Abaixo, listarei, sem spoilers, alguns motivos específicos que provam o apelo de Legion.
1 – A MENTE DE DAVID
Na primeira temporada, a história é apresentada ao público através do ponto de vista de David, que se torna uma espécie de narrador não intencional da história. O problema é que a mente de David não é nada saudável e ele, assim, se torna um narrador não confiável, oferecendo ao público mais de uma interpretação sobre sua própria vida. Este elemento da série é um de seus pontos mais positivos, e o motivo pelo qual, principalmente em sua primeira temporada, ela é vista como uma produção difícil de entender. A viagem é louca, e é extremamente interessante acompanhar David em sua jornada para entender quem ele é.
2 – LENNY CORNFLAKES BUSKER
Interpretada pela maravilhosa Aubrey Plaza, Lenny Busker é uma dos melhores personagens de Legion, e certamente uma das que melhor representa a essência maluca da obra. Lenny está internada na Clínica Clockworks e é a melhor amiga de David. Ao longo da série, no entanto, Lenny apresenta diversas facetas, intrinsecamente relacionadas a David e seu estado mental. É difícil falar da personagem sem dar spoilers, então acredite quando digo que Aubrey Plaza entrega uma performance engraçada, emocionante, sensual e maluca durante toda a produção.
3 – A AUTODESCOBERTA DE SYD BARRETT
Sydney Barrett (Rachel Keller) chega na vida de David quando é internada por um curto período de tempo na Clínica Clockworks. Lá, eles se apaixonam. Mas o poder mutante de Syd faz com que ela troque de corpo temporariamente com qualquer pessoa que ela encoste, e isso impede que ela e David possam manter qualquer tipo de contato físico. Eventualmente, os dois acham um jeito de ficar juntos, e seguem como um casal por boa parte da série. Ao mesmo tempo, aprendemos mais sobre o passado e a jornada de Syd, que se vê muitas vezes como um erro, e cujos traumas a fazem duvidar de si mesma. A série mostra como Syd sai desse lugar de auto desprezo e evolui para alguém com entendimento e orgulho de si mesma, colocando-se em primeiro lugar.
4 – O REI DAS SOMBRAS
Um dos maiores problemas enfrentados por David na série é a influência do Rei das Sombras, o demônio de olhos amarelos, ou simplesmente Amahl Farouk (Navid Negahban). O personagem é um poderoso mutante que existe há séculos, e cujo destino é amarrado ao de David por conta de um evento significativo no passado de ambos. A cada temporada, Farouk é representado de formas diferentes, dando espaço para uma experimentação visual espetacular, além de fornecer um debate moral sobre quem realmente é o vilão da história.
5 – CHARLES XAVIER
Nos quadrinhos, o Professor Charles Xavier, representado nos cinemas por Patrick Stewart e James McAvoy, é o pai de David Haller. Nas duas primeiras temporadas, sua presença em Legion serve apenas como conexão entre David e seu passado, mas o personagem tem participação crucial na terceira temporada da série, e é interpretado perfeitamente por Harry Lloyd. Temos a chance de ver um pouco sobre quem Charles era antes de se tornar o grande Professor X, e ele é essencial para a catarse final de David. Não esperem, no entanto, maiores referências aos X-Men, visto que Xavier é o mais próximo disso que Legion oferece. A história é sobre David, e quem Charles era e o que passou adiante para seu filho é a mensagem que importa.
6 – O “SORRISINHO PODEROSO”
Ok, me acompanhem nesse raciocínio. É impossível negar o charme que Dan Stevens traz ao papel de David Haller. Previamente mais conhecido como o inglês certinho Matthew Crawley em Downton Abbey (2010 – 2015), Stevens tem a chance de explorar diversas facetas de um só personagem ao interpretar David, e minha favorita delas é representada pelo que gosto de chamar de “sorrisinho poderoso”. O mutante está constantemente confuso sobre sua própria realidade, mas quando ele se firma e consegue usar seus poderes, o sorriso aparece, e você sabe que não tem pra ninguém. Motivo bastante pessoal? Talvez. Mas garanto que ao assistir a série você vai entender o que eu estou falando.
7 – LEGIⓍN
Cada episódio da série apresenta o título LEGION de uma forma diferente, e em momentos diferentes do episódio, muitas vezes fazendo alguma brincadeira com a temática do episódio em questão. Tal ideia contribui para o forte apelo visual da série, e faz parte da experiência esperar pelo “FX presents… In Association with Marvel Television…
8 – ESTÉTICA
Algo que ninguém pode criticar em Legion é sua estética deslumbrante. As cores são elementos essenciais da narrativa de cada temporada, e representam os estados de espírito de seus personagens. A fotografia, os planos de câmera, e todas as denominações “Pernalonga de batom” que você pode pensar ganham a nota máxima na série, e até o fim da produção, este aspecto não deixou a desejar.
9 – TRILHA SONORA DE JEFF RUSSO
Assim como a parte visual, o design de som e a trilha sonora da série são extremamente conectadas com a narrativa, e de forma primorosa. As músicas variam de artistas como Pink Floyd, The Who, Rolling Stones, Bon Iver, Tame Impala e Nina Simone. E a trilha sonora de Jeff Russo oferece a atmosfera perfeita para essa história única. Seguem exemplos da primeira temporada, sem spoilers: Levitate, Darkness (Full Suite), Choir and Crickets, David and Syd.
10 – MELHORES MOMENTOS
Para fechar a lista, resolvi citar momentos ou temáticas que representam o melhor de Legion, para te convencer de uma vez por todas que essa foi uma das melhores produções televisivas dos últimos tempos.
Os poderes de David – De ataques descontrolados à perfeita manipulação de seus poderes, David sai de um jovem problemático que não acreditava em si mesmo para o mutante mais poderoso da Terra, e que provavelmente acaba acreditando até de mais em sua superioridade.
“Você levanta quando o Rei aparece!” – O Capítulo 7 de Legion possui uma sequência espetacular que emula uma cena de Cinema Mudo ao som de uma versão do Bolero de Ravel. Ela é a primeira de várias das sequências criativas que Legion trouxe ao mundo.
“Por que é azul? Sempre é azul” – A amizade de David e Lenny passa por diversas provas, e se torna cada vez mais confusa ao longa da história. Mas a relação que os dois têm é certamente um ponto alto, e a conclusão desse arco é bem emocionante.
Batalha de dança – Lutas com armas ou com os próprios punhos? Não, batalhas de danças no plano psíquico! A cena do primeiro episódio da segunda temporada reforça que Legion é essa loucura mesmo, e o melhor é aproveitar a viagem.
“Uma ilusão começa como qualquer outra ideia: como um ovo” – Também na segunda temporada é apresentado um novo recurso narrativo: explicações de conceitos psicológicos, para representar o atual estado de David, e o efeito que ele está causando em seus colegas. Melhor ainda, tais explicações são feitas pela voz de Jon Hamm.
“Eu sou Legião” – Parte da terceira temporada da série, o melhor é não oferecer contexto para tal cena. Mas depois de três anos, essas palavras causam um sonoro ‘FINALMENTE’ no espectador.
É isto, do coração de alguém cuja ideia de como é possível contar histórias completamente mudou depois de Legion, espero que este texto sirva para convencer o maior número de pessoas a darem uma chance à David Haller, e à lição deixada pela sua história.
“Aperte o botão para começar novamente”
Formada em Comunicação Social, editora de conteúdo do Cinema com Rapadura, Louise Alves é Potterhead, Marvete e viciada em trilhas sonoras. Seu gênero favorito é ação, mas sabe todas as falas de Orgulho e Preconceito. Odeia gente que acorda de bom humor e nunca leva desaforo pra casa.