Na Idade Média umas das táticas mais utilizadas durante as guerras eram os cercos. Quando um exército precisava tomar um castelo ou uma fortaleza, ao invés de tentar derrubar as muralhas e bater de frente com o exército inimigo, arriscando uma enorme carnificina, além de danificar a edificação que possivelmente seria sua, ele simplesmente cercava a fortificação com o maior número de soldados e material bélico possível de forma que seus inimigos ficariam presos dentro de sua própria morada. A ideia era pressionar para que quem estivesse dentro fosse acometido pela falta de provisões e derrotado pela sede e pela fome. Alguns cercos duravam dias, talvez meses, o que desgastava também o exército que cercava, ansiosos pela rendição do inimigo para que pudessem descansar em suas casas.
Em fevereiro de 1993 a extinta agência americana ATF (Bureau of Alcohol, Tobacco, and Firearms), seguido do FBI cercam um grande casarão no meio do nada na cidade de Waco, no Texas. A acusação que causou o cerco era de que os habitantes da casa guardavam um enorme arsenal de armamento ilegal. Mas era muito mais do que isso. Os moradores da casa compunham um grupo religioso de ramo cristão que ficou conhecido como Ramo Davidiano, liderados por David Koresh. O grupo seguia uma interpretação da Bíblia cristã que, segundo Koresh, havia sido revelada a ele por Deus, tornando-o, assim, uma espécie de mensageiro ou profeta. A doutrina proferida por David falava, entre outras coisas, sobre o sexo ser algo profano e que deveria ser evitado, ficando David com o “fardo” de ter que procriar, como manda a escritura, com várias “esposas”, tirando o peso de seus maridos, tudo consentido tanto pelos homens como pelas mulheres. Como se não pudesse ficar mais bizarro, uma das esposas de David havia engravidado anos antes quando tinha apenas 14 anos de idade.
Drew Dowdle e John Erick Dowdle, criadores e escritores da minissérie em seis episódios intitulada Waco (2018) basearam-se em dois livros que relatam os eventos daquele fatídico incidente: Waco: a Survivo’s Story de David Thibodeau e Stalling fo Time: My Life as an FBI Hostage Negotiator de Gary Noesner, o primeiro um dos sobreviventes de Monte Carmelo (como era chamado o casarão) e o segundo o agente do FBI responsável pela negociação para a rendição de David Koresh e seus seguidores.
Os dois primeiros episódios funcionam como uma apresentação dos dois personagens principais, Koresh (Taylor Kitsch) e Noesner (Michael Shannon), cada um com suas peculiaridades. David Koresh, de início, nunca é apresentado como um grande vilão, ou alguém com algum tipo de insanidade mental, parece sempre ser um cara boa pinta e com ótimos argumentos sobre sua revelada interpretação das escrituras cristãs, proferindo sua teoria com um poder de oratória que apaixona seus ouvintes, parecendo sempre convicto do que está saindo de sua boca. Enquanto isso Gary Noesner é o experiente chefe do setor de negociações do FBI, dando inclusive aulas sobre táticas para iniciantes. Noesner é chamado para resolver um impasse envolvendo reféns, tentando resolver tudo da maneira mais complacente e racional possível, diferente de seu colega responsável pela operação tática do FBI, o impulsivo agente Decker (Shea Whigham), que será outra importante peça nos eventos de Waco.
Á partir do terceiro episódio se dá início o drama do cerco de fato. E o que poderia se tornar uma narrativa enfadonha e demorada, quando bem conduzida acaba por se mostrar um excelente estudo de situação, envolvendo personagens complexos e suas relações. Os Dowdle conseguem realizar a difícil tarefa de humanizar os integrantes do Ramo Davidiano, mostrando seus temores, dúvidas quanto sua fé e seu pregador e desespero pela situação em que se encontram, e o fazem tentando o máximo possível não fazer juízo sobre sua fé, deixando à cargo do espectador decidir o que achar. E mesmo que coloque seu líder David como antagonista, fazendo-nos desacreditar muitas vezes que é uma fraude, insistindo em não se entregar e, assim, salvar muitas pessoas, também o mostra como acreditando com veemência no que profere.
Por sua vez, Noesner é um personagem problemático (mesmo que Shannon esteja incrível como sempre) exatamente por ter uma moralidade impecável, afastando-o da humanidade falha de seu “antagonista”, se descontrolando apenas quando não alcança seu propósito. No entanto é também um personagem importante, pois torna-se a balança entre os dois lados do cerco, tendo que controlar tanto os Davidianos quanto seus colegas do FBI, muitas vezes tão instáveis quanto os primeiros. O contrário exato de Noesner é Decker, sempre disposto a chegar ás últimas consequências, não para salvar as pessoas envolvidas, mas para acabar de uma vez com toda aquela situação, tomando decisões precipitadas que sempre acabavam por piorar a situação, fazendo dele um segundo antagonista da história.
A série também acerta em mostrar o importante papel da imprensa no desenvolver do impasse, através de telejornais ou programas de rádio locais, após os longos dias de cerco os acontecimentos já eram acompanhados por praticamente todo o país e por uma boa parte do mundo, o que pressionava cada vez mais o FBI, sempre colocado como um dos maiores culpados pela piora constante da situação, fazendo, até mesmo, uso de práticas ilícitas como tortura psicológica contra os habitantes de Monte Carmelo.
Waco é, assim, uma série extremamente competente em criar uma tensão progressiva e que felizmente opta pela reflexão sobre as falhas inerentes aos seres humanos, quando poderia apenas fazer um espetáculo perturbador em cima dos acontecimentos daqueles infelizes 51 dias.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.