Muita gente já conhece, ou pelo menos ouviu falar, sobre a fatídica saga da adaptação para o cinema do livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? do cultuado autor de ficção científica Philip K. Dick. Ridley Scott, que pouco tempo antes havia emplacado o sucesso de bilheteria Alien o Oitavo Passageiro (Alien, 1979), juntou-se aos roteiristas Hampton Fancher e David Peoples nesta árdua missão de contar em um filme a jornada do caçador de recompensas Rick Dekcard na desolada Los Angeles do longínquo ano de 2019. Blade Runner, o Caçador de Androides (Blade Runner, 1982) foi lançado em 1982 em uma versão totalmente remexida pelo estúdio, que considerou o corte final do diretor complicado demais, acrescentando uma narração explicativa ao filme, além de um final feliz (com um plano “emprestado” de O Iluminado de Kubrick), entre outras coisas. O filme teve uma péssima recepção tanto de público quanto de crítica, sendo considerado um fracasso na época. Anos depois a obra ganha várias novas versões até chegar a uma versão final definitiva em 2007 reformulada pessoalmente pelo próprio Scott. Nestes anos todos o filme já havia ganhado a alcunha de “clássico cult” e gostando ou não é um dos maiores responsáveis pela forma como o gênero ficção científica (mais especificamente as distopias, que tanto me agradam) é apresentada em suas mais diversas formas no cinema.
Blade Runner bebe, por sua vez, de uma fonte bem mais antiga, tanto a literatura de ficção científica de onde se origina seu material fonte (Além de Dick, Ray Bradbury, Isaac Asimov, Aldous Ruxley e Arthur C. Clarke só pra citar os mais famosos), mas também filmes como Metrópolis (Metropolis, 1927) de Fritz Lang, 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) de Stanley Kubrick e THX 1138 (1971) de George Lucas, entre muitos outros. Então, o que exatamente fez o filme de Ridley Scott consagrar-se como uma obra prima do gênero? Em minha opinião a resposta pode ser resumida, apesar de não simplificada: Blade Runner é a união de três fatores que convergem para criar essa grandiosidade cinematográfica que conhecemos: complexidade visual exuberante, uma trilha musical que joga o expectador de cara naquele universo e por último o levantamento de questões filosóficas/existenciais fundamentais para o gênero. Não considero nem de longe Blade Runner um filme perfeito (de cara posso apontar um grande problema no desenvolvimento dos personagens), mas é inegável que o filme é um marco absoluto no cinema de ficção científica.
Dito minhas considerações sobre o clássico de 1982, chegamos assim ao que realmente interessa: Blade Runner 2049 (2017).
De início é importante ressaltar minha felicidade/alívio ao ouvir o anúncio de que Denis Villeneuve, já um de meus diretores favoritos da atualidade, seria o responsável por liderar esta empreitada que seria expandir o universo que vimos no filme de 1982. Antes mesmo de seu incrível A Chegada (Arrival, 2016), sabia da capacidade de Villeneuve em tratar questões profundas sem se utilizar de recursos didáticos, sempre respeitando a inteligência do espectador. E fiquei ainda mais feliz quando soube que o diretor retornaria sua parceria com o diretor de fotografia que eu considero o melhor em atividade atualmente, Roger Deakins, de Os Suspeitos (Prisoners, 2013) e Sicario: Terra de Ninguém (Sicario, 2015). Apenas estas duas notícias já tinham bastado para elevar minha expectativa até as colônias de Marte. Mas, os trailers que se seguiram e principalmente os três curtas lançados poucos meses antes da estreia e que antecederiam os eventos do filme, servindo como um elo entre os dois longas, me causaram tamanha euforia, que eu nem sei o que teria acontecido se uma decepção me acometesse. E como estou vivo aqui para dar minha opinião sobre o filme, você já pode imaginar que minhas gloriosa expectativa foi alcançada. E digo mais: superada.
Tentando manter o texto o mais livre de spoilers que consigo, a trama de Blade Runner 2049 se inicia tão simples quanto a de seu antecessor. 30 anos após os acontecimentos do primeiro filme, como o título já indica, K (Ryan Gosling) é um caçador de replicantes que investiga a presença ilegal de um exemplar do tipo Nexus 8 em uma isolada fazenda de lesmas (?). Neste ínterim acaba encontrando uma pista que o leva a uma investigação ainda maior envolvendo um possível acontecimento que pode transformar todo o futuro tanto dos seres humanos quanto de seus escravos replicantes.
No espaço de tempo entre este e os acontecimentos de Blade Runner de 1982 a fabricação de replicantes foi terminantemente proibida após um blecaute de proporções gigantescas possivelmente causado por replicantes do novo modelo Nexus 8. Após isto uma grave crise de alimentos se instala deixando a população humana em risco iminente de findar-se. Mas o cientista Niander Wallace (Jared Leto) resolve o problema com avanços na tecnologia de alimentos geneticamente modificados. Logo em seguida a Wallace Corporation adquire o que restou da, então falida, Tyrell Corporation, responsável pela fabricação de replicantes. Wallace desenvolve então o novo modelo Nexus 9, capaz de obedecer sem restrições as ordens de seres humanos, tornando novamente viável a utilização de replicantes tanto nas colônias interplanetárias como também agora no próprio planeta Terra, nos mais variados setores.
Villeneuve, juntamente com os roteiristas Michael Green e Hampton Fancher (que havia trabalhado no roteiro do primeiro filme), nos leva novamente a uma Los Angeles caótica, como no primeiro filme, mas aparentemente ainda mais destruída, já que trinta anos se passaram. A fotografia de Deakings em uma majestosa harmonia com o incrível detalhamento do designer de produção Dennis Gassner expande ainda mais o cenário que havíamos visto no primeiro filme, com enormes planos abertos, marca registrada de Deakins, belamente enquadrando as mejestosas edificações em contraponto a espaços desérticos, geralmente em tons amarelados que reforçam a poluição tóxica no ambiente, e até mesmo as cenas em locais fechados mostram grandes salões sem muitos detalhes. Lembro especialmente de uma sala onde Luv (Sylvia Hoeks), replicante braço direito de Wallace, reúne-se com um cliente e tem as quatro paredes iluminadas por grandes reflexos de luz em uma água sempre em movimento. Em contrapartida aos cenários limpos do interior das edificações, as ruas de LA, sempre cheias de vendedores ambulantes e quinquilharias, assim como no primeiro filme, aqui se mostram ainda mais deterioradas, os marcantes e enormes letreiros em neon do primeiro filme são referenciados e até repetidos aqui, como o enjoy Coca-Cola e o Atari brilhante. Outro ponto positivo no incrível design de produção é a utilização de aparelhos tecnológicos ainda bem parecidos com os do primeiro filme, deixando claro que, apesar dos anos decorridos, o black out de anos atrás deve ter causado um atraso no desenvolvimento de novas tecnologias. Assim é justificada a estilosa utilização de monitores de tubo e telefones com fio que tanto marcaram o visual do primeiro filme. Mas, todas estas referências estão inseridas de forma totalmente orgânica e funcional, não operando apenas como lembrança de que há um filme anterior a ser referenciado.
O tom ao estilo noir e de filme de investigação que o primeiro nos trás também está presente, no entanto a diferença entre os protagonistas dos dois longas é imediatamente percebida. Enquanto o Rick Deckard de Harrison Ford se apresentava mais como o tipo bonachão e desenvolto, às vezes até grosseiro, o K de Gosling mostra-se infinitamente mais sensível e melancólico (que instantaneamente me lembraram seu personagem em Drive, 2011), podemos perceber isso principalmente pela relação entre o agente e seu interesse amoroso Joi (Ana de Armas), uma inteligência artificial – quase ao estilo da Samantha de Ela (Her, 2013) – personalizada em um holograma de figura feminina. O romance entre os dois quase chega a ser brega e desnecessário, mas depois se justifica para o que o filme apresenta.
Sobre as questões trazidas pelo enredo e pela jornada de descobertas do protagonistas, acho mais justo deixar que cada um sinta de sua própria forma, mas preciso apenas salientar que o filme não apenas retorna e subverte com as ideias que o filme anterior abarca como expande estes questionamentos, levando-os a outros patamares. Digo apenas que Philip K. Dick ficaria orgulhoso deste roteiro, assim como ficara com o do filme de 1982, que infelizmente não teve a oportunidade de ver as reverberações no público e na cultura no geral, pois chegou a falecer pouco antes de sua estreia.
Finalmente posso dizer que Blade Runner 2049 (pelo menos por mim) pode-se não apenas se considerar uma continuação á altura da obra-prima de 1982, mas também como um grandioso filme em si mesmo, independente do anterior. Por vezes pensei que poderia ter uma duração menor do que suas 2 horas e 43 minutos, mas depois chego a conclusão de que o filme tem exatamente o tempo que o diretor e demais envolvidos acharam necessários para que tocasse bem no íntimo da mente do espectador. Por que foi assim que me senti ao terminar de ver o filme, como se alguém tocasse minha mente e ao mesmo tempo me incomodasse e causasse certo prazer.
Devo ressaltar que fatalmente deixo de lado neste texto muitas outras questões e referências que o filme nos presenteia, mas dou a desculpa que este é um filme para se ver muitas e muitas vezes e certamente, como acontece com seu antecessor e cada uma dessas vezes vai nos levantar mais e mais questões.
Também preciso dizer que seria injusto não parabenizar o elenco de coadjuvantes primorosamente escalados, a maravilhosa rainha do mundo Robin Wright, Dave Bautista, Mackenzie Davis que junto com outros já citados acima formam um elenco que me deixou literalmente de boca aberta como a muito não ficava.
PS: a maioria dos acontecimentos anteriores ao filme podem ser entendidos melhor nos três curtas que mencionei anteriormente – o anime Black Out 2022; 2036: Nexus Dawn e 2048: Nowhere to Run. O filme pode ser visto sem eles, e até mesmo sem o filme de 1982, mas fica ainda mais interessante com esse background.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.