Dessa forma Lucky (2017) me impactou pessoalmente de uma forma que eu não estava esperando. No filme, Lucky (Harry Dean Stanton) é um senhor nonagenário, veterano de guerra e ateu, que vive sozinho em sua casa numa pequena cidade de interior do sul dos EUA, quando descobre estar no inadiável fim de sua vida. Tendo como plano de fundo o característico som de uma gaita (ou harmônica) pontual como trilha musical e o cenário desértico de sol implacável daquela região árida, Lucky mantém uma rotina quase sagrada, provavelmente construída ao longo de muitos anos, desde o momento em que acorda em casa com o despertador tocando, faz seus exercícios diários, veste sua roupa e penteia seus cabelos, tudo apresentado em uma sequência incrível de planos fechados que não têm medo de mostrar um corpo fragilizado pelos anos e a lentidão de quem não tem motivo e nem forças para ter pressa. Depois vai à mesma lanchonete resolver palavras cruzadas e comer “o de sempre”, para em seguida voltar em casa à tempo de ver o mesmo programa diário na TV, passando antes na mesma loja para comprar seu sagrado maço de cigarros. À noite vai ao mesmo bar encontrar com os mesmos velhos amigos de sempre e recontar histórias memoráveis de seus, nem tão gloriosos, passados.Mas no meio de toda essa repetitiva rotina, após saber que está inevitavelmente no fim de sua vida, Lucky passa a refletir sobre sua situação, sobre o papel que cumpriu em sua existência, sobre o sentido das coisas, através de excelentes diálogos com os diferentes personagens que vai encontrando em seu dia-a-dia, conversas que revelam seus temores, suas imperfeições, seus rancores e algumas poucas felicidades, tudo apresentado em um ritmo desacelerado, quase emparelhado com a velocidade do cágado que fugiu de seu amigo Howard (uma feliz participação de David Lynch com quem Stanton trabalhou recentemente na terceira temporada de Twin Peaks).
A estreia na direção do ator já veterano John Carroll Lynch mostrou uma sensibilidade tocante, de forma que temas tão pesados como a morte e a velhice, fossem tratados de forma leve e, em alguns momentos, até mesmo esperançosa, fazendo perceber que não deve haver tristeza quando a vida segue seu destino natural. O humor meio seco trazido pelos roteiristas também estreantes Logan Sparks e Drago Sumonja impõe certa delicadeza às reflexões levantadas pelo filme e a cena em que o protagonista canta uma triste música ao som de mariachis em uma festa infantil familiar me fez derramar algumas lágrimas, mas não de tristeza, e sim de sincera alegria pela celebração do fim de uma vida.

Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.
