A velhice sempre me impressionou muito. Desde criança pensava com muita admiração sobre como viviam as pessoas que já estavam mais perto, cronologicamente falando, do dia de sua morte do que do dia de seu nascimento. Lembro claramente que, quando criança, 12 ou 13 anos, certa professora, numa tentativa de socializar a turma com um grupo da terceira idade que visitava a escola, indagou quem de nós gostaríamos de ficarmos velhos. Prontamente todas as crianças da sala – eu incluso – responderam que não queriam ficar velhas nunca. A professora imediatamente respondeu que, sendo assim, nós poderíamos morrer ali mesmo, naquele exato momento, já que naturalmente todo ser humano deve envelhecer se deseja viver muito. Obviamente aquilo causou em nós um festival de olhos arregalados e bocas abertas, mais pela obviedade da afirmativa da professora do que por medo de morrer ou alguma outra coisa do tipo. Aquele breve diálogo me marcou profundamente, de forma que eu passei a observar os idosos de uma forma totalmente diferente, me levou a refletir sobre tudo que eles já viveram, suas experiências, suas memórias, as tradições que seguiam, e a explicação para muitas de suas ações. Passei a sentir imenso prazer em ouvir as conversas dos mais velhos, me transformando, assim, naquele tipo tão comum de criança que fica ao “pé” da mesa dos avós e tios com o ouvido e os olhos atentos nas reuniões de família.
Dessa forma
Lucky (2017) me impactou pessoalmente de uma forma que eu não estava esperando. No filme, Lucky (Harry Dean Stanton) é um senhor nonagenário, veterano de guerra e ateu, que vive sozinho em sua casa numa pequena cidade de interior do sul dos EUA, quando descobre estar no inadiável fim de sua vida. Tendo como plano de fundo o característico som de uma gaita (ou harmônica) pontual como trilha musical e o cenário desértico de sol implacável daquela região árida, Lucky mantém uma rotina quase sagrada, provavelmente construída ao longo de muitos anos, desde o momento em que acorda em casa com o despertador tocando, faz seus exercícios diários, veste sua roupa e penteia seus cabelos, tudo apresentado em uma sequência incrível de planos fechados que não têm medo de mostrar um corpo fragilizado pelos anos e a lentidão de quem não tem motivo e nem forças para ter pressa. Depois vai à mesma lanchonete resolver palavras cruzadas e comer “o de sempre”, para em seguida voltar em casa à tempo de ver o mesmo programa diário na TV, passando antes na mesma loja para comprar seu sagrado maço de cigarros. À noite vai ao mesmo bar encontrar com os mesmos velhos amigos de sempre e recontar histórias memoráveis de seus, nem tão gloriosos, passados.
Mas no meio de toda essa repetitiva rotina, após saber que está inevitavelmente no fim de sua vida, Lucky passa a refletir sobre sua situação, sobre o papel que cumpriu em sua existência, sobre o sentido das coisas, através de excelentes diálogos com os diferentes personagens que vai encontrando em seu dia-a-dia, conversas que revelam seus temores, suas imperfeições, seus rancores e algumas poucas felicidades, tudo apresentado em um ritmo desacelerado, quase emparelhado com a velocidade do cágado que fugiu de seu amigo Howard (uma feliz participação de David Lynch com quem Stanton trabalhou recentemente na terceira temporada de Twin Peaks).
A estreia na direção do ator já veterano John Carroll Lynch mostrou uma sensibilidade tocante, de forma que temas tão pesados como a morte e a velhice, fossem tratados de forma leve e, em alguns momentos, até mesmo esperançosa, fazendo perceber que não deve haver tristeza quando a vida segue seu destino natural. O humor meio seco trazido pelos roteiristas também estreantes Logan Sparks e Drago Sumonja impõe certa delicadeza às reflexões levantadas pelo filme e a cena em que o protagonista canta uma triste música ao som de mariachis em uma festa infantil familiar me fez derramar algumas lágrimas, mas não de tristeza, e sim de sincera alegria pela celebração do fim de uma vida.
O que nos trás ao maior pilar deste filme, sem o qual este não faria o menor sentido, o fenomenal Harry Dean Stanton, que para quem não sabe veio a falecer de causas naturais, aos 91 anos, poucos meses antes da estreia do filme nos EUA, o que é obviamente uma infelicidade, mas também é poético, quase como se este filme estivesse destinado a ser seu derradeiro trabalho. Mas, destino ou não, Stanton encerra sua carreira da maneira mais linda possível com um dos filmes mais tocantes que vi nos últimos anos e que certamente vai reverberar na minha vida até meu inevitável fim.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.