A Misteriosa Morte de Pérola – quando o medo encontra a saudade

O cinema de gênero, exaltado e difundido por Hollywood desde seus primórdios, parece ter sido por muito tempo rejeitado por um certo cinema contemporâneo. Mesmo que as referências estivessem claramente presentes, era quase como uma ofensa ou um rebaixamento relacionar alguns filmes contemporâneos com filmes de terror, comédia ou, o pior de todos, ação. Mas recentemente temos visto uma aproximação e uma aceitação cada vez maior da influência deste cinema em relação a filmes contemporâneos ou não tão comerciais, o que, em minha opinião, tem sido muito benéfico tanto para uns como para outros.
A Misteriosa Morte de Pérola (2014) é um belíssimo exemplo deste possível ótimo relacionamento entre o cinema de gênero, no caso horror/suspense, e o cinema contemporâneo.
Realizado quase que completamente por Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, responsáveis por direção, roteiro, produção, fotografia, arte, som e montagem, além de serem os dois protagonistas do filme, e que representam também a união entre duas jovens produtoras cearenses, a Alumbramento (já não tão jovem, com seus pouco mais de 10 anos de estrada) e a Tardo Filmes, A Misteriosa Morte de Pérola é um filme extremamente minimalista em sua feitura e em seu enredo, mas ao mesmo tempo grandioso em suas aspirações.
O filme é dividido intencionalmente em duas partes, na primeira, intitulada “Os Fantasmas da Solidão”, somos apresentados a Pérola (Ticiana Augusto Lima), uma jovem brasileira que se muda para Paris para estudar arte. Ao chegar à cidade aloja-se em um antigo apartamento onde viverá solitária durante sua estadia. A partir de sua chegada ao local percebemos que a solidão e a claustrofobia emanadas daquele ambiente, apresentados já na sequência em que a nova moradora abre suas janelas deixando a luz entrar em cada cômodo do lugar, deverão ser muito caras ao desenvolvimento do filme.
A memória e o tempo são outros pontos importantes trazidos pelo filme. Pérola frequentemente lembra (ou sonha) de momentos passados, festejando entre amigos ou com o namorado na praia, e o uso das imagens em VHS nestas sequências, além de um efeito estético que instantaneamente nos remete nostalgia ou saudade, terá também uma importância direta no enredo principalmente na segunda parte. Além disso, as pinturas espalhadas pelas paredes do apartamento trazem consigo uma intenção ou mais objetiva, como quando Pérola observa o quadro Le déjeuner des canotiers (1881) de Renoir e é levada à lembrança da festa com os amigos, ou simbólica como com L’Oiseau Mort (1759) de Greuze, que retrata uma menina ao encontrar um pássaro morto.

 

 

 

É perceptível também desde o início o minimalismo do filme em relação aos sons. Com raras falas, presentes principalmente nas cenas onde Pérola frequenta as aulas ou quando fala ao telefone, o filme está muito mais preocupado em criar um clima de tensão baseado em sons do ambiente (por vezes de uma forma maximizada) como ruídos, rangidos de portas e janelas, o despertador tocando estridente, o tic tac de um relógio e as fortes passadas. A trilha, inteligentemente composta por Rodrigo Dario, Simon Fernandes e Uirá dos Reis, nos traz às vezes um piano clássico tocado rapidamente, quando acompanhamos às memórias (ou sonhos) de Pérola, às vezes sintetizadores, nos momentos de maior tensão (e dá o tom onírico dos pesadelos da personagem), e é incrível como a interrupção brusca da trilha acompanhada de um corte igualmente brusco, seja pela voz do professor na aula ou pelo despertador tocando, nos remete ao despertar de um sono.
A falta de diálogos exige então do filme uma composição visual que, juntamente com o uso dos sons citados acima, nos transmitam as mensagens desejadas pelo roteiro o que a direção faz muitíssimo bem através de linguagem corporal e de olhares, explícitos na boa utilização de recursos do cinema clássico, como planos ponto de vista, por exemplo.
A morte, representada por um fantasma ou uma figura masculina mascarada que passa a perturbar a personagem, pode ser considerada a terceira e última chave para entendermos o filme. Parecendo sempre estar ao lado de Pérola, seja quando ela entra ás pressas no apartamento ao voltar da aula deixando a porta entreaberta ou quando fere a mão ao cortar um pão, a morte se configura como uma eminência cada vez mais próxima. Os pesadelos da personagem parecem cada vez mais se misturarem à sua realidade, como no belíssimo plano em 360 graus circulando uma Pérola atônita ao som pesado do pêndulo do relógio (que podemos ouvir circulando assim como a imagem).
Na segunda parte, “As Dobras da Morte”, temos o Namorado de Pérola (Guto Parente) chegando ao apartamento aparentemente tempos após a moça ter morrido misteriosamente naquele lugar. Portando uma câmera VHS o rapaz, composto de uma forma estranhamente caricatural, inicia uma espécie de busca pela “imagem” da falecida namorada filmando os cômodos do apartamento bem como parte da área exterior e é bonito como podemos perceber uma repetição de ângulos escolhidos pela decupagem nestas filmagens em relação a quando a moça habitava o lugar na primeira parte do filme.
Ao finalmente aparecer nas gravações, causando uma reação eufórica do rapaz, Pérola está usando uma máscara que tanto pode ser relacionada com a máscara usada por seu perseguidor, como com a máscara usada por uma das personagens de um dos filmes que ela assistia na primeira metade, Os Olhos Sem Rosto (Les Yeux Sans Visage, 1960) de Georges Franju, uma grande referência utilizada por Guto Parente e Ticiana Augusto Lima. O close/zoom da câmera VHS (memória) dado no olho de Pérola com a cabeça ensanguentada quase ao fim do filme (morte) se contrapõe diretamente ao close/zoom dado em seu olho enquanto dormia no início (sonho), criando uma inter-relação entre sonho, morte e memória tão importantes para o filme.
  
Solidão, memória e morte. Três temas que são comuns ao cinema de uma forma geral, sem fazer nenhuma distinção entre clássico ou contemporâneo, de gênero ou contemplativo, antigo ou recente. A Misteriosa Morte de Pérola é, então, um filme que ao utilizá-los de uma forma tão assertiva demonstra a coragem de não se importar com estas barreiras impostas ao cinema.