Em 2016, o diretor pernambucano Kléber Mendonça Filho exibiu em Cannes seu segundo longa-metragem, Aquarius. Uma das marcas da exibição do seu novo filme foi o forte tom político, já que a equipe tornou claro o repúdio ao Golpe de Estado ocorrido em 2016. Contudo, é interessante primeiro notar a evolução do trabalho do realizador pernambucano. Seu primeiro trabalho como realizador foi o curta Enjaulado, de 1997, de lá para cá (2016) foram quase 20. Nesse período, ele realizou mais 9 filmes, sendo 7 curtas-metragens e 2 longas. Iremos ao longo desse breve texto nos debruçar sobre 4 curtas-metragens: Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005), Noite de Sexta, Manhã de Sábado (2006) e Recife Frio (2009).
Vinil Verde é um curta-metragem que flerta com o cinema de gênero, de início temos um tom mais infantil, incluindo um narrador que diz “era uma vez…”, expressão já tal conhecida dos contos infantis da literatura, porém no decorrer do curta, elementos sobrenaturais, de suspense e horror aparecem na narrativa. O que muito me intriga é a escolha da cor verde, tradicionalmente no imaginário popular, as cores que estão ligadas ao sobrenatural são a preta e a vermelha.
Na cultura popular e nos estudos em geral sobre a sua simbologia, o preto é a cor das trevas, do mundo inferior e subterrâneo. O preto representa “o que nega a luz do dia” tornando-se um símbolo do mal. É a cor de Anúbis, deus dos mortos no Egito; a cor do demônio na crença popular cristã; as vestes negras simbolizam dor e morte; na superstição cotidiana, animais pretos como gato ou bode representam infortúnio. Alguns escritos clericais da Idade Média revelam no preto o desprezo pelo mundo e pela vida. (JUNIOR, Vicente. 2011, p 131)
Dentro de uma perspectiva mais contemporânea, o autor citado afirma que a cor verde começa a prevalecer em certas narrativas. O filme de Kleber Mendonça Filho enfatiza bem isso, a mãe afirma por diversas vezes, por meio da voz do narrador, que a filha não deve ouvir o disco de vinil verde, ao final, antes de morrer sem braços e sem pernas, a mãe ainda afirma que ela não deve, em hipótese alguma, usar luvas verdes. Curioso o uso da cor verde e em seguida a morte da mãe.
O verde, por sua vez, é a cor do “estar a caminho” segundo os alquimistas, da transição. Na crença popular ocidental o diabo aparece muitas vezes como “O verde”. O verde tem ligação com a morte, pois é uma da cores do estágio de decomposição. Na China, um pedaço de jade ou esmeralda era colocado na boca do morto impedindo-lhe a putrefação. Em certos casos é símbolo de sexualidade, além de referir-se ao sacrifício humano para os astecas. (JUNIOR, Vicente. 2011, p 134)
Ainda no final, a obra ganha um tom de fabulação, lembrando muito os contos infantis do século XVIII e XIX. No tocante a linguagem, o filme todo é feito em fotografias paradas, o próprio diretor é o fotografo. Esse recurso é muito interessante, pois ao lado da narração reforça o tom fabular, parece que estamos assistindo um livro infantil que é narrado para uma criança antes de dormir. Em termos estáticos, esse diálogo com a literatura dá uma riqueza ainda maior à obra de Kleber Mendonça Filho.
O segundo curta selecionado é
Eletrodoméstica, de 2005. O filme retrata uma família de classe média no final dos anos 90, a própria sinopse do filme no site Porta Curtas indica prenuncia, de forma engraçada, o que passa no filme – “Classe média, anos 90, 220 Volts.”.
Esse curta foi o seguinte após Vinil Verde e o tom do filme em relação ao anterior muda completamente, enquanto no primeiro temos um ar mais fabuloso, neste somos expostos à rotina de uma família de classe média. O filme é convidativo a uma linguagem voyeur, logo em um dos planos iniciais temos a mãe que fuma secretamente olhando, através da janela, os vizinhos do condomínio, crianças jogando bola, um casal se beijando, a expressão da mãe revela o prazer que ela sente ao ver tudo isso sem ser vista, lembra um pouco nossa relação com o cinema como expectador, nós assumimos nossa posição de voyeur.
Majoritariamente gravado com a câmera na mão, seguimos a protagonista o tempo inteiro. A protagonista é a mãe, mas também temos seus dois filhos na história. Ele se propõe a observar essa manhã: preparar o almoço, lavar a roupa, aspirar o pó das coisas, receber a televisão nova, dar água e manga a um transeunte, todas essas ações controladas por um cronometro em um relógio de pulso. A todo tempo somos questionados com essa olhada ao relógio de pulso.
Paralelamente a isso, a direção de arte do curta é impecável, sendo de 2005, o filme retrata bem os anos 90, seja pela seleção dos eletrodomésticos, quanto pela paleta de cor e figurino. Outro ponto de destaque do filme é a montagem, em especial a montagem paralela que ocorre no final. No qual as crianças esperam a pipoca ficar pronta, o celular vibra em cima da mesa e a mãe se masturba com a máquina de lavar. Essa sequência em especial que corria o risco de cair em um erotismo vulgar, é surpreendentemente bonita e contrasta com o resto filme, fazendo um contraponto com o que foi mostrado até então.
O terceiro curta-metragem que vimos foi a Noite de Sexta, Manhã de Sábado (2006), trama simples que conta a relação entre um rapaz em Pernambuco e uma moça em um lugar distante, o curta acompanha um telefonema entre os dois, há indícios de um passado recente, pois entre os diálogos percebemos que eles viveram momentos juntos. As cenas de ambos se passam em meio a ruas e lojas, lembra um pouco a nova onda francesa, o filme é em preto e branco. A cena final de ambos é um plano sequência que foi picotado, a câmera na mão também dá sensação de acompanhamento dos personagens. Porém o grande destaque para esse filme é a montagem e edição de som, um curta metragem todo levado em diálogos pode parecer tedioso, mas devido ao talento e a maneira como o filme foi montado, ele passa longe disso.
O último curta-metragem é Recife Frio, trata-se de um falso documentário, o filme, assim como Vinil Verde, flerta com cinema de gênero, neste caso, ficção científica. Recife, conhecida por seu calor e praias lotadas, sofre de um súbito frio que assola a cidade e a população. O filme inteiro é uma gigantesca crítica social. Por ser um falso documentário, a linguagem por vezes se aproxima de matérias jornalísticas, mas isso é só um recurso do diretor para justamente criticar os programas sensacionalistas que tiram audiência em cima do sofrimento alheio. Além disso, o filme utiliza muito do humor para realizar suas críticas sociais. A sequência que explicita isto é a da família que tem um prédio em frente ao mar, mas que agora ele está desvalorizado devido ao frio, em especial a sequência que o filho fica com o quarto da empregada que é menor e sem janela, por ser o mais quente.
Para ler a segunda parte do Especial sobre o diretor Kleber Mendonça Filho sobre seu primeiro longa de ficção O Som ao Redor clique aqui, e sobre seu novo filme Aquiarius clique aqui.
Atual Vice-presidente da Aceccine e sócio da Abraccine. Mestrando em Comunicação. Bacharel em Cinema e formado em Letras Apaixonado por cinema, literatura, histórias em quadrinhos, doramas e animes. Ama os filmes do Bruce Lee, do Martin Scorsese e do Sergio Leone e gosta de cinema latino-americano e asiático. Escreve sobre jogos, cinema, quadrinhos e animes. Considera The Last of Us e Ocarina of Time os melhores jogos já feitos e acredita que a vida seria muito melhor ao som de uma trilha musical de Ennio Morricone ou de Nobuo Uematsu.