Esse texto pode conter leves spoilers de “Som da Esperança”
Baseado em uma história real, Som da Esperança – A História de Possum Trot (Sound of Hope: The Story of Possum Trot, 2024), adapta para a tela dos cinemas um trecho da vida de Donna Martin (Nika King) e do reverendo WC Martin (Demetrius Grosse). O casal comandava, juntos, uma igreja cristã denominada Igreja Batista Missionária Bennet Chapel. Tal igreja estava situada nos EUA, no Estado do Texas, na cidade que dá nome ao filme.
Depois da morte de sua mãe, e movida pela necessidade de aumentar família – acreditando piamente ter ouvido a voz de Deus – Donna alimenta o desejo de adotar uma criança. Após ir a uma reunião de adoção e assistir a vídeos mostrando a situação crítica de algumas crianças, a primeira-dama do pastor toma uma resolução: ela não quer adotar qualquer criança, ela deseja uma “rejeitada”.
Sob protestos do marido, Donna se vê determinada e, após convencê-lo de que isso era um chamado divino, os dois começam uma campanha dentro da igreja. Como propósito, o casal deseja que seus fieis adotem, também, cada um, sua própria criança. Como resultado, eles obteriam uma diminuição na fila de espera e dariam lares para aquelas crianças que costumam ser devolvidas por pretensos pais adotivos. Isso porque, normalmente, elas vinham de lares problemáticos, era vítimas de abuso e dificilmente se adaptavam à suas novas casas.
Uma tocante história sobre luta social…
Como a história se passa em meados dos anos 1990, os discursos refletem bem os paradigmas da época. Pessoas preconceituosas com crianças que provém de lares mais pobres (ainda que estas mesmas pessoas também sejam pobres), falas que afirmam que adoção é algo prejudicial, pois as famílias estariam levando pra casa filhos de “natureza ruim” e que não poderiam mais ser reeducadas, entre outras coisas. Típico de quem viveu essa época.
Em complemento, O Som da Esperança não nos mostra um conto de fadas em que a adoção é uma solução fácil para resolver os problemas. Sejam esses problemas das famílias que se pretendem adotar, ou das crianças que são adotadas. Pelo contrário: o filme nos mostra o árduo trabalho de readaptação parental de ambas as partes.
O que, a princípio, poderia parecer a realização de um sonho, se torna um ambiente traumático, tóxico e de constante reinvenção. O que já seria suficiente se estivéssemos falando de apenas uma família. Mas o casal de pastores realmente convenceu seu rebanho religioso a enfrentar essa tarefa e cada família da igreja trouxe uma criança pra casa. Ou seja, Donna não teria apenas que dar conta de seus novos filhos (sim, ela adotou mais de uma criança), mas também de ajudar as 100 famílias que congregavam na sua igreja. E, sim, todas elas tiveram problemas com as novas crianças.
Nesse aspecto, os roteiristas Joshua e Rebekah Weigel foram muito bem-sucedidos, conseguindo nos entregar dramas familiares reais e histórias tão potentes que poderiam emocionar mesmo os mais indiferentes. E o filme pode pôr à prova sua vontade de ter um filho, adotivo ou não. Talvez o fato de ser baseado em histórias de pessoas reais tenha dado ao filme essa carga dramática tão poderosa.
…Ofuscada pela exagerada propaganda religiosa
Apesar de um roteiro certeiro e de falar sobre fatos comoventes, muito da luta social de Possum Trot, neste caso específico, está emaranhada na causa religiosa do casal Martin. Isso, por si só, não seria problema. Afinal, sabemos desse o inicio que eles são um casal e pastores e, de forma lógica, eles se guiam pelo que prega sua religião.
Mas um “quê” de exagero em algumas escolhas filosóficas que tornam difícil o trabalho do expectador um pouco mais cético. Ora pois, “O Som da Esperança” não apenas quer no convencer da fé de seus protagonistas, como parece querer nos converter a qualquer. Chega a ser caricata a fórmula como nos são apresentadas algumas das soluções da trama. De maneira tal, que o ápice do filme é o desaparecimento de uma adolescente que fugiu de casa… porque queria e batizar.
Caricata ao ponto que ninguém pensa em outra forma de resolver suas questões internas que não seja exclusivamente através da fé. Nunca se é posto em questão sequer os momentos convenientes em que alguém diz ter ouvido o chamado de Deus apenas para convencer seu parceiro a fazer algo que ele não queria.
Um tanto desapontador, tendo em vista a rica história de luta da comunidade para tirar da posse do Estado a guarda de crianças que, certamente, tiveram suas vidas mudadas para melhor ao encontrar determinados lares.
Definitivamente, uma experiência
Eu tentei mesmo me conectar ao filme. De verdade. Em alguns momentos me vi bastante convencido e acredito realmente na benfeitoria que essa comunidade religiosa fez em prol de ajudar aquelas crianças. Ainda que, pra elas mesmas, essa possa ter sido uma fase frustrante em muitos aspectos.
Fato é que, se você conseguir, com muito, mas muito esforço, passar por cima de toda pregação, discurso piegas e a insistência irritante em provar que Deus existe, “O Som da Esperança” rende alguns ótimos momentos de conflitos familiares e até pode extrair da audiência alguma empatia. Infelizmente, para mim, não foi possível.
O filme estreou em terras brasileiras no último 24 de outubro e tem uma boa recepção do público e da crítica. As atuações são excelentes e o elenco infanto-juvenil não deixa a desejar. No caso de você ser alguém religioso, talvez essa experiência o aproxime mais ainda de fé. Vale o lembrete que, ao final do filme, o casal que inspirou a história aparece trocando ingressos por donativos.
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Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!