2016 era um mundo diferente no que diz respeito aos filmes de super-heróis. Dos bons aos terríveis (foi, afinal, o ano do infame Esquadrão Suicida de David Ayer), todos eles eram fenômenos culturais que incitavam opiniões e debates inescapáveis. Hoje, com um clima cultural em que muitos dos exatos filmes que antes abalavam o imaginário coletivo passam quase despercebidos, é uma experiência estranha voltar no tempo para Deadpool (2016) e descobrir que ainda funciona tão bem.
Wade Wilson (Ryan Reynolds), um ex-agente especial e agora mercenário, têm seu mundo destruído após ser diagnosticado com um câncer terminal. Em uma tentativa desesperada de salvar a própria vida e não partir o coração de sua namorada, a prostituta Vanessa (Morena Baccarin), Wilson aceita participar em uma série de experimentos designados para ativar mutações dormentes (o filme se passa no que antes era o mundo Marvel da Fox, em que os X-Men eram o carro-chefe), e, apesar de ganhar poderes de regeneração que beiram a imortalidade, Wilson também é desfigurado no processo. Motivado por vingança contra Ajax (Ed Skrein), o cientista responsável por sua situação, e por uma cura para suas deformidades, Wilson passa a se vestir em um traje vermelho e preto e se autointitula Deadpool.
Os esforços de Ryan Reynolds, que protagonizou também o Lanterna Verde (Green Lantern) no filme homônimo de 2011, para deslanchar uma adaptação dos quadrinhos de Deadpool se iniciaram em 2004. Entre essa data e a estreia do filme doze anos depois, o desejo de Reynolds de interpretar o mercenário tagarela (apta descrição de Wade Wilson/Deadpool, se ignorarmos o atentado cinematográfico que foi a versão do personagem em X-Men Origens: Wolverine) foi a principal força por trás da realização do filme, e também de seu subsequente sucesso.
Profano, violento, e implacavelmente jocoso, Deadpool, ambos filme e personagem, encapsulam tudo que um fã poderia desejar. Oito anos e centenas de sequências de ação depois, a direção de Tim Miller em seu primeiro filme se mantém como uma das mais enérgicas dentro do gênero. A cena de abertura, um zoom-out de um momento congelado no meio de uma luta em uma rodovia, é uma delícia de créditos iniciais irreverentes ao som de Angel of the Morning, e acerta o tom para o restante do filme.
Os comentário constantes de Deadpool, direcionado a vilões, aliados, e a audiência são, apesar do tom juvenil, genuinamente engraçados. O roteiro de Rhett Rheese e Paul Wernick é ágil, e não contém as piadas ao que se dá dentro da narrativa – há também referências sobre a bagunça que havia se tornado a franquia cinematográfica dos X-Men na época, sobre o fracasso de Lanterna Verde, e inclusive sobre as tentativas anteriores de levar Deadpool para o cinema. É improvável, mesmo se por nenhum outro motivo além de pura insistência, não tirar no mínimo uma boa gargalhada da experiência.
O filme conta com um amplo elenco de apoio. Deadpool tem seu melhor amigo Weasel (T.J. Miller), mora com uma idosa cega chamada Al (Leslie Uggams), faz amizade com o taxista indiano Dopinder (Karan Soni) e se alia com os X-Men Colosso e Míssil Adolescente Megasônico (Stefan Kapičić e Brianna Hildebrand, respectivamente). Se o carisma incessante de Reynolds e sua paixão pelo projeto são os principais motores do filme, isso se deve em parte ao quão bem-acompanhado ele está em talento, com todos os atores esbanjando charme em suas cenas.
Apesar da Fox decididamente não querer envolver este projeto com seu lado maior e melhor apropriado para crianças, Deadpool se beneficia de sua conexão com os X-Men. Diferente dos quadrinhos, o personagem da versão cinematográfica é um mutante, e as tentativas honestas de Colosso de torná-lo um herói respeitável e um discípulo do Professor Xavier provocam, além de momentos engraçados, uma interessante perspectiva sobre a posição ocupada por Deadpool em um mundo cujas expectativas do que significa usar um uniforme ele não apenas não obedece, mas também não tem interesse em obedecer.
Apesar das piadas sobre não ser um super-herói, Deadpool não é a subversão que alega ser. Entre o tempo gasto com a história de origem – levemente mascarado pela narrativa não-linear – e o embate bombástico no terceiro ato, os metacomentários no filme acabam o expondo como um tanto tradicional, por baixo da grossa camada de sangue derramado.
Deadpool não estende sua duração além do necessário, tampouco se limita – é fácil imaginar um universo em que quinze minutos a mais prejudicariam seriamente o ritmo do filme. Tudo em sua composição, da montagem acelerada à trilha sonora divertidíssima de Tom Holkenborg é pensado para dialogar diretamente com a natureza frenética de Wade Wilson. Se o personagem é irritante, ou se seu constante monólogo é cansativo, seria injusto culpar o filme por ser fiel demais à sua proposta.
Ada Albano
Leitora, cinéfila e repleta de obsessões passageiras. Sempre disposta a conhecer obras estranhas e se entreter com conteúdo de qualidade duvidosa.
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